sexta-feira, 25 de setembro de 2009

e-book "O Novo Processo Científico"


Vinicius Carvalho da Silva

Capítulo Primeiro


Origens da tradição do realismo materialista na Grécia antiga.

Muito antes dos ocidentais, os sábios da Índia já haviam formulado sistemas de pensamento nos quais a realidade era originada a partir da composição de micro partículas de matéria. No ocidente até onde sabemos, o primeiro filósofo a postular uma idéia semelhante foi Leucipos, nascido no início do quinto século AC, em Abdera ou Mileto. Ressalta-se que esta última localidade, atual Turquia, na época uma colônia grega, de caráter cosmopolita, favorecia o intercâmbio cultural entre o mundo ocidental e a Ásia. O atomismo está na base do empreendimento intelectual do ocidente, junto com as demais escolas pré-socráticas.

“Um dos maiores legados da história da humanidade é a construção do que se pode chamar de cosmovisão científica: um olhar sobre a Natureza, ou seja, sobre a Physis, tal qual era entendida pelos gregos. A origem do processo dessa cosmovisão, lento e fascinante, corresponde à origem e ao florescimento da Filosofia e da Física na Grécia antiga”.
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 1).

A natureza da matéria – ou simplesmente de corpos extensos dotados de certas propriedades – foi uma questão intrigante para os filósofos antigos, e ainda é para os físicos contemporâneos...”.
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 1).

Entre 440 AC e 430 AC, o filósofo fundou em Abdera uma escola de filosofia onde deu prosseguimento às suas pesquisas. Segundo ele, tudo era composto por átomos. Os átomos eram micro elementos indivisíveis e inextinguíveis, que, combinando-se e acumulando-se, davam origem aos corpos e coisas. Demócrito foi aluno de Leucipos em sua escola e viria a se tornar o grande difusor do atomismo grego. Segundo Demócrito, o universo é feito unicamente de matéria, e a matéria é formada por átomos (do grego, “átoma”, que significa unidade indivisível). Nesta teoria, os diversos estados da matéria davam-se às diversas formas dos átomos.
Os átomos, segundo o Leucipos, não possuem todas as propriedades que nossos corpos percebem na natureza. Suas propriedades seriam apenas algumas, tais como peso, forma e tamanho. As demais propriedades da matéria, que percebemos sensorialmente, seriam decorrentes das interações múltiplas e complexas entre os átomos que constituem nosso corpo e os átomos constituintes dos objetos com os quais interagimos. Para Demócrito, esta interação entre as partículas constituintes da matéria deveria ser exclusivamente local, não havendo possibilidade de processos físicos à distância, ou, não-locais. No início do Cosmos, segundo ele, todos os átomos rodopiavam caoticamente, até que através de inúmeras colisões eles se agruparam, permitindo a formação de matéria e das primeiras estruturas do universo.

“Do ponto de vista atomístico, o que é (o Ser) não é necessariamente Uno, podendo repetir-se um numero infinito de vezes. A matéria não pode ser criada ou destruída, e o Universo é constituído de corpos sólidos e de um vazio infinitamente extenso. Logo, o átomo e o vazio constituem a essência do materialismo da filosofia atomística. Cabe notar que o vazio, na teoria de Demócrito, não é simplesmente nada (a negativa do Ser), já que ele serve de sustentáculo para o movimento dos átomos...”.
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 8).

O atomismo grego, que visava explicar a composição de todas as coisas baseando-se no postulado de que só a matéria é real, encontraria outros defensores ainda no período clássico. Nascido em 341 AC, em Atenas, Epicuro fundou uma escola de filosofia, onde, longe do burburinho do centro ateniense, com seus mercados e falantes, junto com seus amigos, ele dedicar-se-ia às investigações filosóficas. De acordo com os acadêmicos (a Academia era a escola fundada por Platão, bem como o Liceu o fora por Aristóteles) que dividiam a filosofia em três áreas, sendo elas, a Ética, a Lógica e a Física, Epicuro apresentou idéias nestes três campos. Para ele, tal como para Demócrito, o universo é formado por átomos, porém, se para Demócrito os átomos despencam no vácuo, traçando uma trajetória específica, para Epicuro eles estavam sujeitos à desvios espontâneos e não causais. Tais desvios poderiam gerar realidades imprevisíveis, abrindo na realidade uniforme a possibilidade de novas e múltiplas configurações.
De toda forma, os próprios atomistas não apresentaram uma tese para a origem do movimento dos átomos. Contudo, ressaltemos que tal filosofia repercutiu no pensamento elaborador da Física Clássica, mesmo com tal lacuna sobre a origem do universo:

“Entretanto os atomistas não chegaram a apresentar argumento algum que justificasse o movimento inicial dos átomos, o que corresponde a aceitar uma descrição puramente causal de seus movimentos, pensando apenas no resultado da colisão entre átomos, sem se preocupar com o movimento primeiro. Esse ponto de vista – de certa forma aceito e desenvolvido por Newton – foi criticado por Aristóteles, ao escrever: Leucipos e Demócrito, que dizem que os seus corpos primários estão sempre em movimento no vazio infinito, deviam especificar o tipo de movimento que lhes é natural.”
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 8).

Enfim, toda esta tradição incutiu na cultura ocidental, arraigando em nosso pensamento, a crença de que todas as coisas são feitas de matéria, e que o homem é apenas um objeto material, enfim, de que não existe nada além da materialidade atômica, e incluiríamos; do espaço-tempo, e das forças que atuam e organizam a matéria.

Capítulo Segundo



Os pensadores da modernidade e a formação da ciência guiada pelo paradigma do realismo materialista.


Na sua época, o mundo ainda era regido por duas forças; a fé e a espada, entretanto, Francis Bacon postulava que o conhecimento, a ciência, era, de fato, uma fonte de poder. E de um poder sobre a própria natureza, e, portanto, mais amplo, eficiente e produtivo que os demais. Atuando na elevação do status da ciência de um nível coadjuvante ao nível primordial no cenário cultural de suas épocas, filósofos como Bacon, Descartes, Hobbes e Galileu, promoveram a ascensão e o estabelecimento da Ciência moderna.
Bacon não foi só um dos principais defensores ideológicos da ciência, mas também um dos principais elaboradores de sua metodologia, dizendo ao mundo, não só que ele deveria fazer ciência, mas mostrando como. Para ele, nem todo estudo erudito e bem elaborado poderia ser considerado ciência. Para que algo se tornasse um conhecimento, de fato científico, deveria obedecer a uma metodologia rigorosa de pesquisa. Segundo Lou Marinoff, doutor em filosofia e professor do New York City College, o mundo tem uma dívida de gratidão com Bacon, por ele ter nos dado o método científico.
Embora outros pensadores anteriores a Bacon já utilizassem de experiências a fim de demonstrar a veracidade de suas teorias, esse procedimento não era consensual, representando mas uma exceção do que uma regra entre os estudiosos. Mas Bacon apregoou (e Galileu executou) que toda teoria só poderia ser considerada verdadeira se fosse comprovada por meio de experimentos. Nascia o método científico moderno, alicerçado na regra metodológica de união entre teoria e experiência; a segunda testando a primeira, a primeira explicando e prevendo o resultado da segunda.
Bacon levou a paixão pela experiência como busca pela verdade até as ultimas conseqüências; contraiu pneumonia e faleceu em 1926 em Hampstead Heath, após congelar galinhas como parte de um experimento.
O propósito baconiano era tornar a ciência mais do que um empreendimento especulativo, torná-la um instrumento capaz de produzir bens concretos para a humanidade. Em “A grande instauração”, Bacon propõe sua teoria: “Como um espelho desigual modifica o raio das coisas” a mente humana, sozinha, não e suficiente para a compreensão da realidade; “a mente quando recebe a impressão das coisas através dos sentidos, ao formar as próprias noções introduz e mistura sem fidelidade a sua natureza a natureza das coisas”. Ou seja; não somos capazes de conhecer o mundo somente por meio da reflexão, é preciso que examinemos a natureza por meio de instrumentos específicos e precisos, devidamente desenvolvidos para levar empreender a pesquisa de que necessitamos, e através dela, esclarecer-nos os detalhes do que investigamos. Se agirmos assim, além de conhecermos verdadeiramente o nosso objeto de pesquisa, poderemos, sistematicamente, produzir invenções a partir destes conhecimentos, que nos permitam manipular a natureza, controlando determinados processos, e extraindo dela o necessário para o progresso de nossa sociedade.
Para Bacon o método é necessário para a interpretação da natureza, a fim de obtermos verdades científicas, gerando resultados práticos e inquestionáveis. E tal método consiste justamente numa lógica de pesquisa que promove a articulação entre a reflexão racional teórica e a experimentação, em um auxilio recíproco.
O conceito de natureza em Bacon é o de mera matéria a ser investigada e explorada, de modo que seja utilizada para o desenvolvimento da civilização. A ciência, alicerçada no método, era para ele, o instrumento capaz de promover esta dominação sobre o mundo. Ao ver tudo como apenas matéria prima para a produção de utilidades, Bacon reforçou a tese materialista, politizou-a, tornou-a interessante do ponto de vista econômico, fundou uma visão de ciência como geração de conhecimentos importantes para a manutenção do poder. Bacon tornou o materialismo algo muito além de uma ideologia, tornou-o uma concepção de poder, um método de exploração, algo que ensinou aos governos e aos mercados que o conhecimento científico era capaz de dominar a natureza, e que dominada, ela poderia ser comercializada, e suas forças canalizadas em propósitos estratégicos. A crença no materialismo como sendo um retrato fiel da realidade, uma descoberta, uma lei da natureza, não passa de uma ingenuidade. O materialismo moderno é uma estratégia de poder disfarçada sobre a mascará da ciência. Seu propósito é este: encarar toda a natureza como sendo apenas uma matéria prima passiva de ser explorada, explorar os recursos naturais para gerar riquezas, gerar riquezas para construir um aparelho de guerra poderoso, usar esta máquina bélica para gerar poder político, e se utilizar do poder político para alavancar o poder econômico. Mas do que uma verdade científica, o materialismo é um jogo de interesses, um negócio lucrativo, um instrumento eficaz para satisfazer o desejo de dominação de terras, de recursos, de espaços e de povos, nutrido pelos homens ao longo dos séculos. Foi extremamente eficaz no desenvolvimento do estilo de vida ocidental, na constituição de uma civilização tecnológica de alto nível. Entretanto, essa mesma civilização parece estar próxima do seu ponto de saturação, e se antes preocupávamos-nos com o desenvolvimento tecnológico e com o crescimento econômico, ou nos preocupamos agora com o desenvolvimento moral e o crescimento espiritual da humanidade, ou desmoronaremos enquanto humanidade, e quiçá, enquanto espécie.
Outro grande nome do materialismo moderno foi o francês Pierre Gassendi. De Digne, Provence, aos vinte e cinco anos foi nomeado professor de filosofia da Universidade de Aix. Ele viria a se tornar cônego da catedral de Digne, mas mesmo religioso voltou-se contra o aristotelismo, considerado a ciência oficial, naquela época, pela Igreja de Roma. Gassendi defendia a astronomia de Copérnico, o atomismo de Lucrecio e a ética de Epicuro, em detrimento da física e ética aristotélica. Somente sua posição sacerdotal pode protegê-lo da inquisição.
Gassendi,em 1645,tornou-se catedrático do College Royal de Paris, assumindo a cadeira de matemática. Sua filosofia tornar-se-ia extremamente influente, e contribuiu para o desenvolvimento de um materialismo arrojado no meio científico. Segundo Will Durant, no seu clássico “Historia da Civilização”, vemos que “Newton preferiu os átomos de Gassendi aos corpúsculos de Descartes, encontrando no sacerdote da Provence a idéia da gravitação”.
Esses são alguns pontos da obra de Gassendi que concorreram na elaboração do materialismo científico moderno; para ele a alma era absolutamente material, sua existência dependia do corpo, a memória era apenas uma função do cérebro. O universo era constituído por átomos e estes são matéria pura, reafirmando assim os pensamentos de Leucipus, Lucrecio e Epicuro. Sendo assim, Gassendi afirmou um epifenomenalismo, teorizando que a consciência é causada pela matéria cerebral, sendo um mero fenômeno decorrente dos seus estados fisiológicos.
Mas passemos logo ao nome mais cabal na consolidação do paradigma científico do realismo materialista no período anterior a Newton.
Filho de um rico advogado e de uma senhora doente que sucumbiu diante da tuberculose, o jovem Descartes contraiu a mesma doença da mãe, e por pouco, ainda menino, não teve o mesmo destino. Jovem, graduar-se-ia em leis civis e canônicas pela Universidade de Poitiers, e ingressaria no exercito do príncipe Mauricio de Nassau, onde, segundo alguns historiadores, teria participado da batalha da montanha branca, pela guerra dos trinta anos. Conta-nos o filósofo que durante um recesso de guerra,no dia 10 de Novembro de 1619,em Neuburg, na Bavária, ele teria se escondido em uma estufa, a fim de proteger-se do intenso frio daquele inverno. Lá, aquecido,teve três sonhos nos quais relâmpagos e trovões irrompiam e algo lhe era revelado. Quando acordou, havia formulado em sua mente a geometria analítica e elaborado a aplicação do método matemático no campo da filosofia.
Mas nem tudo foi intuição. Descartes foi um estudioso determinado, um pesquisador rigoroso que encarnou o verdadeiro espírito científico. Filosofia, para ele, não era retórica, era pesquisa, criação nascida de um forte trabalho.
Se as preposições particulares de seu pensamento,assim como as de Aristóteles,viriam a ser superadas, o seu método, o sentido mais amplo, geral e sutil do seu pensamento seria incorporado pala ciência moderna, transformando-se em paradigma para ela. Em “Discurso do Método” Descartes elaborou princípios gerais sobre os quais uma ciência segura deveria se erguer. O primeiro principio postulava que até que pudéssemos confiar na veracidade de algo com inapelável certeza, eliminando qualquer dúvida a seu respeito,por mínima que fosse,não poderíamos pensá-lo como certo. Ou seja; devemos considerar tudo falso, a menos que não encontremos um ponto sequer do qual possamos duvidar. Segundo ele “A principal causa de nossos erros encontrar-se-á nos preconceitos de nossa infância(...)de cujos princípios me deixei persuadir, na mocidade, sem ter averiguado se neles havia verdade”. Outro principio consistia em fragmentar ao maximo nosso objeto de pesquisa,e analisar sistemática e rigorosamente, em separado, cada pequena parte que o compõe, a fim de compreender a fundo,com exatidão,todos os detalhes daquilo que estudamos.Esses princípios viriam a fundamentar o caráter da pratica científica, afinal, o cientista é aquele que diante de qualquer fenômeno, dissecando-lhe analiticamente, examinando cuidadosamente todas as partes de sua composição, chega então a invalidar ou corroborar sua veracidade, adquirindo conhecimentos a cerca de suas causas, conseqüências e estruturas. Mais do que isso, esse princípio tornou-se o próprio método da ciência, em todos seus campos de atuação, ou seja, a própria prática científica moderna pauta-se pela especialização analítica, isto e’, o método de pesquisa da ciência, consiste em dividir os objetos de estudo em diversas partes, e analisa-las minuciosamente, até as estruturas mais ínfimas, vendo as coisas não como um todo, mas como coleções de partes. Da medicina a geografia, o método cientifico moderno é cartesiano, consistindo na colocação em prática, enquanto regra de pesquisa e visão de mundo, do princípio filosófico de Descartes, anunciado no Discurso do método.
Paradoxalmente, Descartes não era um materialista. Postulava a existência de duas substancias, uma corpórea, material e outra imaterial, para alem dos meandros da física ordinária. Porem, ao fazer esta distinção e apregoar que a ciência deveria ocupar-se da matéria e seus fenômenos e não da substancia que a transcende, ele acabou por criar uma dicotomia entre o corpo e o pensamento, a matéria e o espírito. Assim, fez com que entendêssemos tais coisas como partes separadas e independentes, sacramentando que a ciência deveria ser exclusivamente materialista.
Qualquer estudo sobre Descartes, ainda que breve, deve mostrar o seu caráter de investigador apaixonado pela pesquisa. O leigo tem a imagem pueril do filósofo como um homem completamente absorvido em seus pensamentos. Descartes encarna bem uma visão mais profunda, na qual o pensamento do filósofo surge como resultado de uma vida concreta de pesquisas e investigações. Citemos novamente Will Durant discorrendo sobre o pensador:


“A ultima década de sua vida, contudo, foi dedicada a ciência. Transformou seus aposentos em laboratório e realizou experiências de física e fisiologia. Quando um visitante pediu para ver sua biblioteca, Descartes apontou para um traseiro de vitela que estava dissecando(...)Já nos referimos a sua geometria analítica, que desenvolveu, e a sua delineação do calculo infinitésimal”. Foi ele que estabeleceu a convenção de usar as primeiras letras do alfabeto, para, nas equações, representarem quantidades conhecidas, e o das ultimas letras para as desconhecidas. Pesquisou a força exercida por sistemas pequenos, como alavancas, cunhas e roldanas, e pelas rodas e tornos. Formulou leis de inércia, impacto e ímpeto. Dissecou animais e descreveu seus detalhes anatômicos. Também dissecou um feto, com especial atenção ao cérebro, com o intuito de verificar a relação entre os processos cognitivos e as estruturas fisiológicas. “Talvez tivesse sugerido a Pascal que a pressão atmosférica decresce com a altitude, embora se tivesse enganado ao declarar que o vácuo não existe em parte alguma, exceto na cabeça de Pascal”.


A teoria dos vórtices, elaborada por ele, “lembra” a teoria contemporânea dos campos magnéticos. Segundo ele, todo corpo está envolvido por vórtices, que são partículas, em turbilhões, a sua volta, formando camadas concêntricas. Descartes atuou ainda em diversas áreas, como na ótica, criando lentes com curvatura hiperbólica ou elíptica, livres das aberrações e distorções ópticas produzidas pelas lentes esféricas.
Como vimos, Descartes foi um grande experimentador, realizando segundo seu próprio método, investigações empíricas em diversas áreas. Sua teoria cosmológica também e’ interessante. Nela, o universo é constituído de vários turbilhões, ou vórtices, nos quais as partículas de matéria, e todas as coisas, tais como planetas e estrelas, giram incessantemente. Todavia, ao contrário do que esta teoria previa, as observações de Kepler demonstraram que as órbitas dos planetas são elípticas e não circulares. Entretanto, não foram os detalhes de suas teorias que se tornaram paradigmáticos para a ciência, mas sim suas idéias mais gerais, tanto metafisicamente(sua visão de mundo e ciência) quanto pragmaticamente (sua elaboração de uma metodologia de pesquisa).
O universo é um mecanismo material e deve ser pesquisado enquanto tal, segundo um método rigoroso com princípios claros de investigação cientifica. Eis a idéia e motivação centrais da ciência moderna. Eis a filosofia cartesiana.
Fazendo surgir uma compreensão da realidade calcada nestas idéias, o cartesianismo concorreu para o assentamento de uma cultura materialista-mecanicista, na qual nossas sensações, emoções, nossos corpos, a respiração, a natureza e todas as coisas, são mecanismos materiais funcionando de acordo com as leis da mecânica. Segundo Durant, essa visão foi decisiva para os conhecimentos obtidos por Harvey, sobre a circulação sanguínea. Na verdade, tanto sua filosofia mecanicista quanto seu método de fragmentar o objeto de pesquisa para estudar cada parte em separado, erigiram um novo conceito de objeto, sistema, organismo e corpo. O corpo humano passou a ser visto como a composição de sistemas distintos, formados por partes específicas. Este conceito foi decisivo para o estabelecimento da medicina moderna. Mais do que isto. No cerne da ciência médica ocidental dos últimos trezentos anos, a filosofia de Descartes encontra-se como paradigma. Influenciada pelo pensamento cartesiano, a medicina percebe o corpo como uma máquina meramente material, divide-o em inúmeras partes, estudando-as minuciosamente, dissecando-lhes os detalhes. O nascimento das diversas especialidades médicas é o próprio método cartesiano sendo seguido detalhadamente.
Para Descartes, portanto, só é real o que através de uma análise minuciosa puder ser tido como tal. Na frase de Max Planck; “O real da ciência é o que se pode medir!”.
Contudo, muitos viram em Descartes um idealista, e influenciados por ele, conceberam a precedência e supremacia do espírito sobre a matéria. Em varias obras o próprio filósofo deixa clara essa idéia. “Penso logo existo”. Constatamos que existimos, não pelo que temos de material, nosso corpo, mas pelo que temos de imaterial,nosso pensamento. O pensamento é que se encontra como essência do homem. Sem ele, o ser é apenas um corpo como outro qualquer. Entretanto, como afirma Durant: “Descartes, contudo, ofereceu um antídoto para o idealismo – a concepção de um mundo objetivo ,completamente mecânico . Sua tentativa para compreender as operações orgânicas bem como as inorgânicas, em termos de mecânica, deu um impulso ousado, porem frutífero ‘a biologia e fisiologia, e sua análise mecânica das sensações, da imaginação da memória e da volição tornou-se uma grande fonte da psicologia moderna.
Descartes foi realmente controverso. Embora sua filosofia tenha sido, e seja extremamente influente, nem de longe o pensador foi bem acolhido em sua época. Recebeu críticas da Igreja e das universidades, de Gassendi e Hobbes. Contudo, em1649, o pensador recebeu calorosos e insistentes convites da Rainha Cristina da Suécia, para que fosse lhe ensinar filosofia. Saiu de Amsterdã para Estolcomo em setembro daquele ano, tendo sido recebido com honrarias de gênio na Escandinávia. Ao longo dos anos, o filósofo adquirira o hábito de acordar tarde, todavia, a Rainha queria ter aulas com ele três vezes por semana, às cinco horas da manha. Durante dois meses de um inverno intenso, o pensador acordou durante a madrugada gelada, honrando seu professorado. No primeiro dia do mês de fevereiro de 1650, Descartes ficou resfriado. Morreu dez dias depois, longe da França, com pneumonia.


“O dicionário da Academia Francesa,em 1694, definia filosofo, como aquele que se dedica a trabalhos de pesquisa relacionados ‘as varias ciências e procura determinar as causas e princípios delas, a partir de seus efeitos”. (Durant)


Descartes não só se enquadrava perfeitamente nesta definição, como ajudou a construir tal conceito. Se suas concepções particulares tornaram-se obsoletas, suas idéias gerais permanecem vivas no cerne paradigmático que norteia nossa ciência e, portanto, nossa cultura.


“(...) no século XXVIII quase nada ficou desse sistema outrora vitorioso, salvo sua tentativa de reduzir o mundo exterior a um mecanismo que obedecia ‘as leis da física e da química. Toda nova descoberta cientifica parecia apoiar esse mecanicismo cartesiano”. (Durant)

Capítulo Terceiro



A ontologia materialista na Ciência Moderna



A ontologia materialista da ciência moderna nasce como fruto da fusão entre o materialismo atomista grego e o mecanicismo filosófico cartesiano.
Em “A mecânica de Newton e sua influência sobre a formação da Física Teórica”, Albert Einstein salientou que:


“A importância dos trabalhos de Newton consiste principalmente na criação e na organização de uma base utilizável, lógica e satisfatória para a mecânica propriamente dita”.
(Albert Einstein – Como eu vejo o mundo – Rio de Janeiro, Nova Fronteira – pg. 186)


Na verdade, a história da ciência moderna é a história do desenvolvimento do pensamento mecanicista materialista (com suas implicações éticas, culturais e políticas). Sobre o ponto essencial do pensamento da física clássica, escreve Einstein:


“Assim, pois, este sistema teórico em sua estrutura fundamental se apresenta como atômico mecânico. Portanto todos os fenômenos têm de ser concebidos do ponto de vista mecânico, quer dizer, simples movimentos de pontos materiais submetidos à lei do movimento de Newton”.
(Albert Einstein – Como eu vejo o mundo – Rio de Janeiro, Nova Fronteira – pg. 194)


Esse paradigma mecanicista foi primeiramente formulado e difundido pela filosofia de Descartes. O pensamento cartesiano foi extremamente influente na física de sua época, e muito influiu sobre o desenvolvimento posterior dessa ciência.


“Nos seus Principia Philosophia, de 1644, Descartes apresenta os fundamentos de seu sistema filosófico e científico, os princípios gerais da Física e detalhadas considerações a cerca de fenômenos terrestres e celestiais. A influência dessa obra, a partir do século XVII, pode ser aferida pelo fato de que não há livro de Física publicado ente 1650 e 1720 (incluindo os Principia Mathematica de Newton) em que os problemas levantados e analisados por Descartes, sob sua ótica mecanicista, não fossem considerados.”
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 24).


Entretanto, embora pioneiro do mecanicismo, Descartes não conseguiu formular uma teoria física consistente, capaz de explicar os fenômenos naturais. Partindo, pois, do mecanicismo, foi Newton quem o fez.


“Coube a Newton lançar as bases de uma nova cosmovisão e iniciar uma nova fase do Mecanicismo.”
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 25).


Todavia, se os detalhes técnicos do sistema físico elaborado por Descartes revelaram-se incompatíveis com as observações empíricas, e se mesmo o seu formalismo matemático foi insuficiente para servir de alicerce para a física clássica, a sua contribuição filosófica para a ciência marcou-a tão profundamente, que podemos dizer que a filosofia cartesiana encontra-se como um paradigma, uma visão de mundo norteadora do empreendimento científico dos últimos séculos. O que estamos à dizer, é que a visão mecanicista de mundo, apresentada pela filosofia cartesiana, inspirou por séculos a ciência física. Ou seja, se não sobreviveram os detalhes técnicos de sua física, o mesmo não podemos dizer de seu ideal mecanicista, que permaneceu vivo no coração da ciência moderna, como notamos nas palavras dos professores Francisco Caruso e Victor Oguri, do Departamento de Física Nuclear e de Altas Energias da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, quando tratam em sua obra, sobre o pensamento de Descartes:


“Seu projeto mecanicista de explicar a pluralidade dos fenômenos físicos a partir das interações entre partículas, no entanto, sobrevive; e’ retomado, por exemplo, no programa einsteiniano de geometrizar a Gravitação”.
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 25).


É claro que sistemas idealistas, que conceberam a existência de algo para além da matéria, surgiram ao longo dos séculos. Pensadores como Platão, Berkeley e Bergson, cada qual em sua época e ao seu modo, apresentaram teorias nas quais discorriam sobre a coexistência entre um plano transcendental de realidade arquetípica, e o plano físico de nossa experiência empírica. Berkeley foi além, levou o idealismo ao extremo e postulou que todas as coisas não são nada mais do que manifestações do pensamento divino. De acordo com sua tese, tudo, todas as coisas, eu, você, o mundo, são partes do pensamento que Deus pensa. A existência de um mundo material real e independente, fora do pensamento de Deus, é pura ilusão. Mas tal ilusão não significa que estejamos sonhando. Deus é quem sonha. Nós somos o sonho.
Os estóicos e Spinosa elaboraram teorias monistas, nas quais Deus está presente em todas as coisas, em cada partícula de matéria, cada célula, cada gota de sangue.
Mas, mesmo havendo tantas teorias idealistas, foi o realismo materialista, que se sistematizando em mecanicismo, tornou-se paradigma cientifico, pois além de parecer mais óbvio e gerar resultados empíricos concretos, o materialismo é interessante economicamente, por impulsionar o progresso da exploração dos recursos naturais, favorecendo o enriquecimento financeiro e o fortalecimento político de nações e mercados, afinal, na base desta teoria, encontra-se a visão de que a natureza, bem como todas as coisas, constitui matéria prima passiva, devendo ser utilizada para o saneamento das vicissitudes de nossa espécie. Não que seja esta a única motivação, mas muitas vezes a construção de uma verdade perpassa por uma estratégia de poder. Aceitamos como verdadeiros, os conceitos que nos são convenientes, que nos servem, em propósitos úteis, para determinados fins e durante certo tempo. Na passarela por onde os homens desfilam suas ambições e mostram-se sedentos por progresso, a “Verdade” deixa de ser uma questão metafísica e torna-se mais um instrumento político. Possuir a “Verdade” é ter o domínio sobre os recursos, os meios de produção, os aparelhos de poder e força. Sendo assim, historicamente, o materialismo serviu bem aos nossos antepassados, empenhados na exploração de novos “mundos”, na abertura de mercados, e em um positivismo industrialista crescente. Por isso, se tivermos em mente o sentido de “Verdade” enquanto “aspecto autêntico da realidade”, temos de admitir o materialismo, não como “Verdade”, já que não há prova de que todas as estruturas do universo possam ser descritas como composições de partículas de matéria. Na astrofísica contemporânea, a constatação de que há mais massa do que matéria em algumas partes do universo, e que esse excedente não material, chamado de matéria e energia escuras, correspondem a mais de 95% do universo, é prova cabal de que uma fé cega no materialismo, disfarçada sobre um pretenso intelectualismo, não se justifica. A teoria da relatividade especial revela que a matéria não é nada mais do que energia condensada. Portanto, é preciso que reflitamos a cerca de nossas convicções, e que, ao invés de considerarmos certos conceitos como verdades, tratemo-los como estratégias do intelecto. Há sempre motivações, mesmo que inconscientes, por detrás do que acreditamos.
Vivemos em sociedades filosófico-científicas, nossos padrões, nossos preconceitos, nossas posturas e comportamentos, mesmo que não percebamos, são construções diretas e indiretas de uma visão de mundo filosófico-cientificista.
Interessa-nos neste capítulo, verificarmos sobre quais alicerces teóricos, a física clássica se ergueu.
Para Amiti Goswami, doutor em física nuclear e professor titular de ciências da Universidade do Oregon, a física clássica tem como paradigma filosófico o realismo materialista. Quais serão os fundamentos conceituais de tal paradigma? Vejamos:


“Os cinco princípios seguintes, portanto, enfaixam a filosofia do realismo materialista:
Objetividade forte
Determinismo causal
Localidade
Monismo físico, ou materialista.
Epifenomenalismo”.
(Amiti Goswami – O Universo autoconsciente – Rio de Janeiro, 2007 – pg. 35, 36)


Trabalharemos com essa visão de Goswami, e analisaremos cada um destes cinco pontos. Mas, antes, ressaltamos que, a pressuposição subjacente a estes cinco princípios é a tese materialista de que toda a realidade, conhecida ou desconhecida, visível ou invisível, perceptível ou não, é constituída por micro partículas de matéria, não havendo nada que não o seja. Os três primeiros princípios dizem respeito diretamente à pressuposto da física clássica, e os dois últimos, às suas conseqüências na visão geral de mundo do ocidente (moderno, pós-moderno e contemporâneo).
Qual o conceito de Objetividade? Segundo Goswami:


Descartes tomou emprestada de Aristóteles a idéia de objetividade. A idéia básica era que os objetos são independentes e separados da mente (“consciência”).
(Amiti Goswami – O Universo autoconsciente – Rio de Janeiro, 2007 – pg. 33, 34)


Este conceito se tornaria, na física clássica, conhecido como Objetividade Forte, e seria um de seus pilares de sustentação. Toda a mecânica de Newton, por exemplo, só faria sentido, se de antemão, o princípio filosófico da objetividade fosse considerado como verdadeiro. Afinal, a mecânica clássica trata dos fatores causais da configuração física do mundo, e estes, por sua vez, são independentes da existência de sujeitos conscientes, não havendo interação entre observadores e objetos, a não ser pelos processos da motricidade humana, agindo fisicamente sobre os corpos externos. Podemos notar a influência deste ideal sobre a descrição dos fenômenos naturais por parte da física clássica, no texto a seguir, de autoria de Einstein:


“Os grandes filósofos da antiguidade helênica exigiam que todos os fenômenos materiais se integrassem em uma seqüência rigorosamente determinada pela lei de movimentos dos átomos. Jamais a vontade de seres humanos poderia intervir (...)”.
(Albert Einstein – Como eu vejo o mundo – Rio de Janeiro, Nova Fronteira – pg. 194)


A idéia expressada acima por Einstein trata dos germes do determinismo causal e da objetividade. O conceito de determinismo causal é o de que todo movimento, por menor que seja, é determinado por uma causa mecânica objetiva, de modo que, quando conhecemos as forças físicas exatas que operam sobre certo sistema, podemos determinar com perfeição todos os detalhes a cerca de sua realidade futura, bem como de seu passado, por mais remoto que seja. Sendo assim, todo movimento poderia ser previsto, levando em conta as leis do movimento, as posições e as velocidades iniciais dos corpos. De acordo com tal visão, o universo é completamente determinado pelas leis da mecânica, de modo que se soubéssemos as posições e velocidades iniciais de todas as partículas de matéria do universo, então poderíamos, calculando seus movimentos, prever inequivocamente toda a história do cosmos, das eras cósmicas mais remotas, até a infinidade dos tempos. Esta visão de mundo, tão cara à Newton, Laplace, e enfim, à toda a ciência praticada nos últimos séculos, perdurou ainda no início do século XX. Esse ideal remonta aos filósofos gregos. Os professores Caruso e Victor apontam dois traços fundamentais da filosofia grega que “marcaram a trajetória cultural do Ocidente” (CARUSO & OGURI, 2006, p.1 ):


“Por um lado, a busca de uma visão da Physis baseada em relações causais, estabelecidas a partir da razão, cujo expoente máximo foi Aristóteles de Estagira. Por outro, a idéia de simplicidade manifestada desde quando se buscou compreender racionalmente a natureza a partir de um único princípio, de uma matéria primordial organizada pela ação dos contrários, e finalmente, a idéia norteadora de que existe um Cosmos, termo grego que significa um todo organizado.”
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 1).


Como vimos, o ideal filosófico de que a natureza é regulada por uma profunda ordem interna está na base deste determinismo moderno.
“A concepção de um determinismo absoluto de cunho mecanicista, nos moldes de Laplace, repousava na convicção de que era possível explicar o caos molecular a partir da ordem e da certeza.”
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 65).


O que chamo de paradigmas filosóficos da ciência, pode ser entendido como sendo visões de mundo a partir das quais o empreendimento científico irá se desenvolver. (Pensemos, por exemplo, no cultivo de vinhas. Temos que, um determinado vinho seja considerado de ótima qualidade. Não nos será possível pensar que o produto final, excelente, poderia existir, se o meio ambiente no qual ele é produzido, por questões tais como climáticas, geográficas, químicas e culturais, não fossem exatamente como o são. Esse conjunto de fatores, que tornam aquele ponto específico do globo, como sendo potencialmente fértil para a produção de um bom vinho, está diretamente ligado ao produto final, é, pois, assim, que quando se bebe um bom cabernet sauvignon, está se bebendo a própria França, ou mesmo o Chile, por exemplo, e enfim, está se bebendo todos aqueles fatores que, reunidos, possibilitaram que o tal vinho viesse a existir e fosse tal como o é, atribuindo-lhe suas características específicas. Da mesma forma, o ambiente cultural de uma sociedade, é como uma estufa, que propícia o crescimento de determinadas árvores do saber, enquanto inibe o desenvolvimento de outras. O que dizemos, é que a ciência não nasceu à toa na Europa, e não no Tibete, por exemplo. E isto porque, a Europa, e não o Tibete reunia os fatores culturais, os pensamentos filosóficos necessários para o desenvolvimento da ciência moderna. O paradigma é pois, aquela condição de possibilidade para o desenvolvimento de uma cultura).Trata-se de entender que, servindo de alicerce para a ciência, existem certos conceitos ou concepções, que, mesmo não sendo nada além do que visões de mundo, servem como diretrizes intelectuais, indicando os caminhos a serem trilhados pela comunidade científica. Características fundamentais do empreendimento científico, como a busca por teorias unificadas e por simplicidade, são frutos, senão, de uma espécie de fé nos ideais filosóficos de Cosmos, Causalidade, entre outros. É também neste sentido, que toda a Ciência, e em nosso caso, a Física, é alicerçada e precedida pela Metafísica. Isto quer dizer que estes ideais que tanto inspiram o empreendimento científico não são constatações, nem da razão, nem empíricas, mas tão somente disposições intelectuais que nutrimos, e que nos levam à fazer ciência da forma que fazemos. Durante séculos a ciência vem se ocupando em tentar entender e explicar o mundo, movida pela fé (convicção) de que (1) os fenômenos da natureza possuem causas específicas, e (2) que um conjunto de leis da natureza é a causa simples que configura toda a realidade, e (3) que, no fim das contas, conseguiremos explicar que toda a diversidade do universo se origina das mesmas causas naturais. Vemos isto claramente em dois momentos. Em Newton, quando declara que todo o saber pode ser sintetizado em um processo de focalização do conhecimento em torno de questões centrais, das quais todos os demais problemas variados irão surgir, e em uma citação sobre a obra do historiador da Ciência Gerald Holton, na qual o mesmo enfatiza como o ponto de partida do empreendimento científico são pressupostos filosóficos compartilhados ou ao menos disponíveis nas sociedades em que vivem os homens de ciência. Vejamos:


“Ofereço (os Principia) como os princípios matemáticos da filosofia, pois toda a essência da filosofia parece consistir nisso – a partir dos fenômenos de movimento, investigar as forças da natureza e, então, a partir dessas forças, demonstrar os outros fenômenos.”
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 65).


Newton revela aqui, sua convicção metafísica, de que todo o universo poderia ser entendido, desde que pudéssemos compreender as forças da natureza, enquanto causas primordiais de todos os demais (e diversos) fenômenos naturais, é tal convicção metafísica, que ele chama de essência da filosofia, e que, portanto, é também a essência da ciência, bem como sua motivação maior. A citação abaixo, é também exemplo significativo do que aqui tratamos:


“A relação entre causa simples e efeitos complexos, como bem enfatiza o historiador da ciência Gerald Holton, não e’ uma necessidade nem lógica, nem experimental, mas, poderia ser acrescentado, apenas uma convicção metafísica.”
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 65).


Sendo assim, ressaltamos os conceitos de Objetividade e Determinismo como paradigmas norteadores da ciência moderna.
Mesmo em pleno nascimento da mecânica quântica, levaria um tempo para que fosse percebido o fato de que a velha física e seus princípios, que outrora se acreditara serem de alcance universal, eram agora limitados por uma fronteira: O “Mundo Quântico”. A realidade nas escalas subatômicas. Russel, pensador já do século XX, foi um dos que não perceberam, entre muitos, que a nova física reformularia totalmente nossa visão determinista de mundo. Russel revelou-se, ainda, crente no determinismo causal:


“Se por outro lado, admitirmos as afirmativas do método científico, não podemos evitar a conclusão de que a causalidade e a indução são aplicáveis à volição humana tanto quanto a qualquer outra coisa. Tudo quanto aconteceu no século XX em matéria de física, fisiologia e psicologia serve para reforçar esta conclusão”
(Bertrand Russel – Ensaios Céticos – Rio de Janeiro, 1970 – pg. 84, 85)


O princípio da Localidade foi desenvolvido muito depois de Newton. O seu formulador, um homem dos nossos tempos, foi Albert Einstein. A teoria da relatividade é uma teoria da gravidade, sendo uma extensão da teoria clássica da gravidade aos objetos que traçam movimentos em velocidades muito elevadas. Segundo tal teoria, há um limite de velocidade para o deslocamento dos corpos. O princípio da localidade implica que qualquer interação entre objetos se dá por meio de uma ligação material, ou seja, objetos que se influenciam (que interagem), necessariamente, propagam essa influência entre si, através de sinais locais, que são sinais que se deslocam pelo espaço-tempo numa velocidade sempre inferior à velocidade da luz, que é de trezentos mil quilômetros por segundo. De acordo com esse princípio os corpos que compõem o universo estão dispostos no espaço-tempo, sendo separados e independentes uns dos outros. Para que informações sejam compartilhadas entre dois corpos, ela deve viajar através do meio que os separa, sempre abaixo do limite de velocidade previsto pela teoria.
Na teoria de Descartes, havia dois planos distintos de realidade. De um lado, a mente e de outro o corpo. Espírito e corpo encontrar-se-iam na glândula pineal. Neste ponto do cérebro, o espírito se assentaria no corpo, e a partir dele o comandaria. Com o desenvolvimento da fisiologia, da física e da química, a ciência moderna negou o dualismo cartesiano, descartando a existência do espírito e afirmando que só a matéria é real. A ironia, foi que a própria filosofia cartesiana, postulando que o objeto da ciência era a matéria, e propondo uma fundamentação mecânica para o mundo, concorreu para o estabelecimento do materialismo científico. Esta visão de mundo, no qual tudo que existe é necessariamente material, é chamada de monismo materialista. Como já vimos, a difusão e consolidação desse monismo materialista é historicamente indissociável do mecanicismo-atomista da física clássica. Embora tanto Galileu, quanto Descartes, Newton, entre tantos outros, declarassem sua fé em um Deus, a verdade é que, dentro do sistema mecânico-atomista, não havia espaço para conceitos místicos, como Deus, e níveis sutis de realidade, uma vez que o próprio sistema exigia que exatamente tudo que existe deveria ser fisicamente explicado, como bem nos lembra Tomas S. Kuhn, em “A Estrutura da Revoluções Cientificas”:


“Por exemplo, depois de 1630 e especialmente após o aparecimento dos trabalhos imensamente influentes de Descartes, a maioria dos físicos começou a partir do pressuposto de que o Universo era composto por corpúsculos microscópicos e que todos os fenômenos naturais poderiam ser explicados em termos da forma, do tamanho, do movimento e da interação corpusculares. Esse conjunto de compromissos revelou possuir tanto dimensões metafísicas quanto metodológicas. No plano metafísico, indicava que espécies de entidades o Universo continha ou não continha – não havia nada além de matéria dotada de forma e em movimento. No plano metodológico, indicava como deveriam ser as leis definitivas e as explicações fundamentais: leis devem especificar o movimento e a interação corpusculares; a explicação deve reduzir qualquer fenômeno natural a uma ação corpuscular regida por essas leis.”
(Tomas S. Kuhn- A Estrutura das Revoluções Científicas – São Paulo, 2001 – pg. 64, 65)


Esse trecho acima citado é significativo para pontuarmos algo importante: ele desmistifica a visão de que a ciência é a busca imparcial pelo conhecimento da realidade. Essa, por certo, é uma visão romântica e ingênua a cerca do que é ciência. Vemos que, a ciência é um empreendimento intelectual, que tenta representar a natureza por meio de modelos e teorias, baseadas em determinados pressupostos. Sendo assim, tendo sido um modelo teórico consolidado e aceito, há um esforço em fazer com que todos os fenômenos físicos estejam de acordo com as previsões do modelo. Caso um fenômeno isolado não concorde com o modelo, e mesmo após várias tentativas de ajuste entre ambos, o tal fenômeno seja contrário aquilo que o modelo aceita e prevê, então a busca pela explicação desse fenômeno será abandonada, sem romantismo. Esse fenômeno será simplesmente considerado sobrenatural, e pejorativamente desdenhado como algo impossível e inexistente, e seus teóricos, como ignorantes ou charlatães. Por certos, alguns fenômenos sem explicação não serão logo descartados, mas também por que não discordam tanto dos modelos científicos. Tudo se passa como se não fosse a ciência que devesse concordar com a natureza, mas a natureza que devesse concordar com a ciência. Somente quando uma série de fenômenos importantes para a nossa compreensão do mundo começam a revelarem-se discordantes em relação aos modelos científicos estabelecidos, é que a ciência se vê obrigada a reavaliar seus modelos, e alargá-los, refiná-los, ou em casos extremos, até abandoná-los, a fim de construir novos alicerces teóricos que dêem conta de absorver, sem contradições, esses novos fenômenos que o sistema antigo não conseguiu acomodar e compreender.
Enfim, notamos que foi com base no pressuposto de que o Universo é compreendido apenas materialmente, que todo idealismo (tese, ou de que: (1) o nível da consciência, existente como um nível sutil de realidade, é a causa de toda a realidade material, ou que: (2) existem outros níveis de realidade que são metafísicos, ou simplesmente de que: (3) as experiências subjetivas, tais como pensamentos e emoções, não podem ser reduzidas à explicações materialistas) foi relegado como ilusão.
Assim surgiu outro princípio que ora listamos entre os cabais para a ciência clássica. Este princípio remonta ao pensamento de Pierre Gassendi, filósofo francês do período moderno, e sua teoria de que o pensamento, bem como os sentimentos e demais experiências subjetivas, são conseqüências físicas da mecânica fisiológica da matéria cerebral. Este é o princípio do epifenomenalismo, segundo o qual a mente, a consciência, pensamentos, sentimentos, emoções e vontades (toda a experiência subjetiva) são fenômenos secundários derivados dos processos eletroquímicos neurológicos. Pensamos que pensamos, e nos iludimos ao pensarmos que temos sentimentos, quando na verdade tanto o nosso pensamento quanto o que julgamos sentir são apenas fenômenos que só existem como conseqüências de nossa atividade cerebral.
O epifenomenalismo, por mais estranho que possa parecer ao homem comum, é necessariamente inferido dentro de um sistema determinista materialista, como é o caso da mecânica clássica, implicando que tudo, inclusive os pensamentos (enquanto processos físicos eletroquímicos neurológicos) e as ações humanas (enquanto simples efeitos físicos-motores dos comandos cerebrais), são totalmente determinados pelas leis e processos mecânicos que regulam o universo.
Podemos, portanto, aventar que estes sejam os princípios da filosofia do realismo materialista que servem como paradigmas científicos na modernidade.
O primeiro, objetividade forte, afirma que a realidade de cada coisa é independente da consciência dos observadores que as percebem. O segundo, determinismo causal, estabelece que sempre há uma causa mecânica para o movimento dos corpos, de modo que toda realidade se encontra determinada a partir destas causas, podendo ser rigorosamente descrita e prevista. O terceiro, localidade, concebe que só pode haver ligação e interação locais entre os corpos, de modo que a influência entre dois objetos se propagam pelo espaço-tempo numa velocidade finita, pressupondo que toda a realidade existe no espaço-tempo. O quarto, monismo materialista, reafirma que todas as coisas são feitas de matéria, de modo que tudo pode ser descrito em termos de estruturas físicas e químicas. O quinto, epifenomenalismo, endossa que não existe consciência como entidade independente da matéria, de modo que são as condições da matéria cerebral que criam e determinam as experiências mentais, tais como pensamentos e sentimentos.
Entretanto, a despeito de toda esta tradição, os conceitos da física clássica estão demonstrando ser incapazes de explicar satisfatoriamente os processos físicos comuns aos níveis subatômicos, sugerindo que os processos quânticos estão para além do que uma ciência materialista é capaz de resolver.
Para Tomas S. Kuhn, no seu clássico “A estrutura das Revoluções Científicas”, quando um paradigma se torna insuficiente em explicar certos fenômenos que se apresentam como cabais e inevitáveis para que compreendamos a natureza da realidade, então há o indicio claro da falência deste paradigma, através de uma revolução científica que culminará na adoção de um novo paradigma por parte da comunidade científica, de modo que esta nova visão de mundo seja capaz de apresentar respostas claras e coerentes a cerca dos pontos que na concepção antiga apresentavam-se problemáticos e paradoxais.
Stephen Hawking, doutor em cosmologia e professor Lucasiano de Matemática da Universidade de Cambridge, que ocupa a cadeira de Isaac Newton naquela instituição, discorre, em sua obra “Uma nova historia do tempo” sobre o caráter da ciência e a natureza das teorias científicas. (Em o “Universo numa casca de noz”, Hawking assume compartilhar da visão filosófica de Karl Popper, segundo a qual, as teorias científicas são modelos de descrição dos fenômenos naturais, e não representações exatas e precisas da natureza, e que portanto, qualquer teoria científica está sujeita à revisões) Segundo ele:


“Uma teoria será boa se satisfazer duas exigências. Ela deve descrever com exatidão uma grande classe de observações com base em um modelo que contenha somente poucos elementos arbitrários e deve fazer previsões bem definidas sobre resultados de observações futuras (...). Qualquer teoria física é sempre provisória, no sentido de ser apenas uma hipótese; nunca há como prová-la. Não importa quantas vezes os resultados dos experimentos estejam de acordo com a teoria, você nunca poderá ter certeza de que, na próxima vez, o resultado não a contradirá. Como enfatizou o filosofo da ciência Karl Popper, uma teoria é caracterizada pelo fato de fazer varias previsões que, em princípio, poderiam ser refutadas ou invalidadas pela observação (...) se algum dia for constatado que uma nova observação é discordante, precisaremos abandonar ou modificar a teoria”.
(Stephen Hawking – Uma Nova história do tempo – Rio de Janeiro, 2005 – pg. 23, 24)


Se a física quântica apresenta apenas paradoxos quando seus resultados são vistos através das lentes do materialismo, é possível que o problema esteja não nos seus resultados, uma vez que estão devidamente comprovados, mas nas tais lentes pelas quais os interpretamos. Muitos autores, como John Weller, Paul Davies e Amiti Goswami vêm propondo uma mudança radical no paradigma norteador da ciência, postulando que os dados da física quântica devem ser interpretados a partir de uma visão idealista de mundo, ou seja, de uma visão não materialista, que conceba uma profunda interconexão entre a consciência e a matéria, com primazia da primeira sobre a segunda, sugerindo-nos que o atual paradigma deixou de apresentar resultados, de modo que se continuar a ser adotado, não conseguiremos aprofundar nossos conhecimentos, ficando presos num mar de paradoxos e confusões, de tal feita, que ou deixamos de ser mecanicistas materialistas, ou deixaremos de fazer ciência.

Capítulo Quarto



O nascimento da Mecânica Quântica

Os “quantas” de Planck e os fótons de Einstein e o átomo de Bohr.

A palavra “quanta” significa algo como “pacote”. Dizer, portanto, que a natureza da luz é quântica, é dizer que a luz não é um fenômeno de radiação contínua, como um fluxo incessante de energia, mas sim, que, é formada por muitos “pacotes” de luz. O nascimento, de fato, da física quântica, é o nascimento das primeiras teorias, que ao invés de descreverem determinados fenômenos como sendo contínuos (como um fio de água incessante) passaram a descrevê-los como sendo quânticos (como uma goteira, que libera uma gota de cada vez). A primeira teoria, estritamente quântica, remonta à Max Planck:

“... o cientista alemão Max Planck sugeriu, em 1900, que a luz, os raios X e outras ondas eletromagnéticas poderiam ser emitidos somente em determinados pacotes discretos que ele chamou de quanta.”
(Stephen Hawking – Uma Nova Historia do Tempo – Rio de Janeiro, 2005 – pg. 93)

A Teoria de Planck, que previa a existência de quantas como sendo pacotes específicos (não contínuos, “latejantes”) de energia, possibilitou-nos compreender a existência de vários níveis ou tipos de radiações. A radiação emitida pela chama de uma vela e a emitida pelo sol, não são só diferentes em termos de quantidade, ou seja, do tamanho da fonte, mas também em termos qualitativos. Os processos nucleares que ocorrem no interior do sol são fortes o suficiente para liberarem imensos pacotes de energia, produzindo raios ultravioletas. São esses raios que alteram a pigmentação de nossa pele. Isto acontece não pela magnitude do sol, afinal ele é muito mais do que uma imensa bola de fogo. Sua condição de estrela confere-lhe uma composição química especial, diferente da de uma simples chama. A radiação emanada pelo sol não é continua, mas quântica, o que equivale a dizer que o sol libera pacotes de luz, como se fossem partículas, denominados de fótons, e que tais pacotes transportam uma quantidade de energia muito superior aos fótons liberados por uma simples chama. Essa nova concepção a cerca da natureza das radiações, seria o primeiro passo de uma revolução na compreensão da realidade dos fenômenos físicos.
Em 1905, Einstein publicou o resultado de suas primeiras pesquisas sobre a teoria quântica, nos quais propunha que a luz existia como fótons, e que esses eram quantas de luz, ao contrário do entendimento científico convencional de que a luz era propagada em ondas, como evidenciou James Clarck Maxwell. Nesta tese, quanto mais energia estivesse contida em cada fóton, maior a freqüência da luz emitida.
Planck disse que a liberação de radiação por quantas de energia era um tipo de salto quântico. O dinamarquês Niels Bohr, em 1913, sugeriu que a idéia de saltos quânticos aplicava-se a todo o mundo atômico, explicando diversos fenômenos.
A física clássica procurava descrever todas as coisas como mecanismos materiais que funcionavam de acordo com determinados princípios. Ainda influenciado por isso, Ernest Rutherford elaborou em 1911 um modelo para explicar a estrutura atômica. Esse modelo assemelhava-se muito ao nosso sistema solar. Neste modelo, no interior do átomo há um núcleo ao redor do qual os elétrons orbitam. O problema é que nem este modelo, nem nenhum outro modelo clássico, explicam a estabilidade dos átomos. Na física clássica, enquanto giram em torno do núcleo, os elétrons emitem luz, e conseqüentemente liberam energia progressivamente, até caírem no núcleo. Uma vez que isso acontecesse, os átomos, perdendo seus elétrons, entrariam em colapso, o que comprometeria a estabilidade da matéria. O mundo estaria “esfarelando”, ou sumindo, continuamente.

A dualidade onda-partícula, e a relação entre natureza e observação.

Lembremo-nos agora da teoria quântica da luz de Albert Einstein, que descreve a luz como pacotes de energia denominados fótons. Segundo tal teoria, a luz é composta por partículas. Porém inúmeras experiências comprovam que a luz se propaga na forma de ondas. Temos, então, um impasse; a luz é partícula ou onda? Se várias experiências demonstram a natureza ondulatória da luz, outras experiências revelam seu caráter de partícula.
A luz deve ser onda e partícula, ao mesmo tempo. O que define se a luz irá se apresentar como onda ou partícula é como iremos observá-la. O “mostrar-se” da luz depende de como observamo-la. Em algumas experiências, notamo-la como onda, em outras, como partícula. Esse paradoxo, segundo Heisenberg, abala dois alicerces clássicos materialistas. Primeiro; o da não contradição aristotélica, de que algo não pode ser diferente de si próprio sobre o mesmo aspecto. Tal principio é incompatível com a observação de que a natureza da luz “flutua” entre o aspecto de onda e o de partícula. A objetividade forte também é descartada. Este princípio diz que os objetos são o que são independentemente da existência de observadores. Porém, se a luz se apresenta como onda ou partícula, de acordo com a experiência que escolhemos para observá-la, então, nossa escolha consciente afeta o resultado da experiência. A observação e o observado estão interconectados, influenciando-se reciprocamente, deitando por terra o princípio materialista da objetividade.
Esse caráter dual já seria catastrófico para a física clássica materialista se envolvesse só a luz, porém, seria totalmente fatal para ela caso se aplicasse a todos os domínios da matéria. Imaginemos que não só a luz, mas que todos os objetos fossem ondas além de serem corpos particulares. Imagine que todas as coisas, pessoas, objetos, enfim, toda a matéria é feita de ondas eletrônicas. Se ao mesmo tempo em que a luz é uma partícula, ela também é uma onda, então significa que a luz é duas coisas ao mesmo tempo, que a natureza da luz é dual. A física clássica, influenciada pelo realismo materialista, apostou todas as suas fichas na tese de que o universo é feito de partículas de matéria, logo, se a tese ondulatória aplicada à luz se estendesse aos átomos, então toda nossa concepção de universo, de matéria, de natureza, de objetos, deveria ser reformulada.
Em 1924, o francês Luis Victor de Broglie associou a separação entre os picos das ondas sonoras com a separação das órbitas estacionárias concêntricas ao redor do núcleo atômico, descritas por Bohr. As ondas que ocorrem quando uma corda de violão é posta em vibração são ondas estacionárias, confinadas em seus próprios movimentos, ondas que não se propagam pelo espaço, mas que perturbam o meio, gerando ondas que se espalham pelo espaço-tempo. Estas ondas, quando captadas por nosso aparato auditivo, excitam-no, gerando um pulso elétrico nas ramificações nervosas do sistema auditivo, e tal informação é enviada ao cérebro, que decodificando a freqüência recebida, atribui a ela uma sonoridade específica. Essa onda não é um som, é uma vibração. Entre duas pessoas que conversam (no espaço-tempo) que as separa, não há som, há apenas ondas se propagando. O som das vozes que ambas escutam, só existe na mente dos dois indivíduos. Ambos os tímpanos são excitados pelas ondas ‘‘mudas’’ criadas pelo complexo anatômico, que tendo as cordas vocais como cerne, funciona como instrumento de produção das mesmas. O mundo só não e’ mudo dentro de nossas mentes.
Broglie notou que a natureza das ondas estacionárias cria um espectro de freqüências, ou seja, cada nível de vibração é uma freqüência, havendo vários níveis de vibração em uma única onda estacionária. Observou também, que em espaços fechados, as ondas permanecem estacionárias. Assim, Broglie pensou que os elétrons, partículas constituintes da matéria, poderiam ser ondas confinadas no interior do átomo, produzindo, portanto, padrões ondulatórios estacionários no interior atômico. Deste modo, a órbita atômica mais próxima do núcleo seria uma onda estacionária de baixa freqüência, e as órbitas mais afastadas seriam ondas de alta freqüência. O átomo que até então fora sempre considerado uma partícula, um mecanismo formado por peças sólidas, revelou-se como sendo uma onda confinada em um ponto. Uma onda e uma partícula, ao mesmo tempo.
Se projetarmos uma partícula contra um alvo impenetrável e observarmos o resultado, obviamente ela atingirá o alvo em um único ponto específico. Mas se projetamos uma onda, ela se espalhará, e veremos uma série de riscos paralelos, chamado de padrão de difração, que somente ondas provocam.

Einstein, o primeiro a perceber a dualidade da luz, não teve dificuldade em observar que De Broglie poderia muito bem estar certo: a matéria pode ser tão dual quanto a luz.”
(Amiti Goswami – O Universo autoconsciente – Rio de Janeiro, 2007 – pg. 54)

A teoria de Luis Victor de Broglie foi comprovada quando um feixe de elétrons foi disparado através de um cristal tridimensional, contra um alvo apropriado, e o resultado obtido foi um padrão de difração. Mediante experiências como essa, as dúvidas desaparecem; a matéria realmente possui uma natureza dual, sendo onda e partícula. O que determina se ela se apresenta de uma forma ou outra é como observamo-la. Se fotografarmos a trajetória de um feixe de elétrons em uma câmara de gás, os riscos sobre a lâmina serão evidentes em mostrar que os elétrons propagaram-se como partículas. Se projetarmos um feixe semelhante contra um alvo, obtemos um padrão de difração, que mostra, inequivocamente, a natureza ondulatória da matéria. Impressionante como, a participação do observador, que por sua ação consciente, escolhe a experiência a ser realizada, é fundamental para a definição do resultado obtido. É como se a consciência determinasse a configuração do resultado, ao deliberar sobre como será realizada a experiência. As pinturas de Claude Monet são uma boa metáfora da relação entre os observadores e os objetos observados na física quântica. Um quadro seu é uma superposição de duas realidades, como por exemplo, um borrão e uma paisagem. O que determina o que ele será é o modo como será observado. Se o observamos de perto, o vemos como um borrão, se nos distanciamos, o vemos como uma bela paisagem. Quando ninguém o esta observando, ele existe em um estado híbrido, ele co-existe, como duas possibilidades vivas em uma única fonte, tal como uma matriz mista, da qual diferentes realidades podem brotar. Sem ser observado, ele não é nem bem uma mancha multicolor, nem uma fina figura, sem ser visto, ele é tinta sobre uma tela, uma possível mancha e uma possível paisagem, uma imagem arquetípica, uma onda de possibilidades, da qual experiências diferentes serão extraídas. Somente quando um ser consciente o observa, de perto ou de longe, sob uma luz ou outra, é que o quadro deixa de ser essa coexistência de possibilidades, essa indeterminação entre o borrão e a paisagem, para se apresentar de forma concreta, deste ou daquele modo. A tela e o observador são, de acordo com a teoria do matemático Doug Hofstadter, uma hierarquia entrelaçada, influenciando-se mutuamente. Alguns passos à frente e o observador transforma a paisagem em borrão, transformando sua própria percepção.
Da mesma forma, na mecânica quântica, o elétron, antes de ser observado, é um aparente paradoxo, um objeto surreal, uma sobreposição, uma “onda-partícula”. Quando observado, o elétron é obrigado a se decidir, a se materializar de uma forma ou de outra, afinal, é impossível que percebamos algo, ao mesmo tempo, como duas coisas diferentes, sobre o mesmo aspecto. Mas é exatamente essa a realidade do elétron antes de ser observado; uma sobreposição partícula-onda, de modo que mais apropriado do que dizer que o elétron existe de uma determinada forma, é dizer que, antes de ser observado, o elétron “coexiste com ele mesmo”. Mas, quando observado, como dizíamos, o elétron sai do limbo, deixa de ser uma realidade mista surreal e se mostra concretamente, ou como partícula, ou como onda. Depende de qual observação escolheremos efetuar.
Físicos como John Weller e Paul Davies, sugerem que é a observação de um ser consciente que promove a passagem do elétron de uma realidade hipotética, indeterminada, potencial e hibrida, para uma realidade concreta, física e objetiva. Para o físico Amiti Goswami, a consciência é a fonte causal do universo, sugerindo que é a consciência que produz a realidade, que o mundo arquetípico da consciência gera o mundo material.

Capítulo Quinto



A natureza probabilística do mundo quântico e a incerteza quântica.


Werner Heisenberg nasceu em Wurzburg, em 1901 e morreu em Munique no ano de 1976. Foi laureado com o Nobel de Física de 1932 e foi um dos fundadores da mecânica quântica. Formulou o princípio de incerteza, que descreve o comportamento das partículas subatômicas e escreveu várias obras nas quais discorreu sobre aspectos filosóficos da ciência.
Erwin Schrödinger e Werner Heisenberg desenvolveram equações, descrevendo matematicamente a natureza ondulatória da matéria e prognosticando as propriedades dos objetos quânticos, tais como a dualidade onda-partícula. Ao formalismo matemático que descreve a natureza subatômica, damos o nome de Mecânica Quântica.
Segundo o físico Max Born, as ondas de elétrons são ondas de probabilidades. É provável que numa onda de possibilidades (região onde é provável que o elétron se encontre) localizemos uma partícula específica, mas não é certo. Será mais provável localizarmos a posição de um elétron ou obtermos o seu momentum( sua massa multiplicada por sua velocidade) em determinadas regiões da onda, e menos em outras. Haverá toda uma região onde será possível localizarmos-lo. Quanto mais ampla essa região, mais elevado o grau de incerteza quanto a estes dois pontos. Heisenberg estudou essa questão com afinco, e constatou que a indeterminação é inerente ao mundo quântico.


“Na mecânica quântica, uma partícula não possui uma posição ou velocidade bem definida, mas seu estado pode ser representado pelo que se denomina função de onda. Uma função de onda é um número em cada ponto do espaço, que indica a probabilidade de a partícula ser encontrada naquela posição.” (Stephen Hawking – O Universo numa casca de noz – São Paulo, 2001 – pg. 106)


No nível quântico, nada é certo e tudo é provável. Tudo que podemos saber, portanto, do mundo quântico, são as probabilidades de uma partícula existir ou não, estar ou não em uma região. Teríamos pensado como Laplace, que poderíamos conhecer o mundo nos seus mínimos detalhes. Mas parece, que a lição de Kant, de que a coisa em si nos é incognoscível, permanece, de certo modo, viva, na constatação que não podemos conhecer a realidade em si, do Universo, mas apenas a probabilidade desta realidade ser de um modo ou de outro. O véu da probabilidade encobre, ou a realidade mesma, ou o conhecimento que temos dela. Nas palavras de Sir Arthur Eddington, professor de Astronomia e Filosofia Experimental da Universidade de Cambridge:


"Debo todavia insistir em la pergunta: Que observamos realmente? La teoria de la relatividad ha dado una respuesta: solo observamos relaciones. La teoria de los cuantos da outra: solo observamos probabilidades." (EDDINGTON, A. S. 1946. P. 128)


Porém, isto não significa que o mundo quântico não possua ordem. As partículas subatômicas estão sujeitas a leis rigorosas, mas leis probabilísticas e não determinísticas, permitindo que o nível quântico seja o plano criativo do qual toda a realidade emerge. Entretanto, se a incerteza quântica se aplicasse além das dimensões subatômicas, as características do nível quântico invadiriam a macro realidade, e viveríamos num mundo surreal. Essa incerteza é própria do mundo quântico. Vejamos essa questão mais detidamente: Segundo o princípio de incerteza de Heisenberg, a posição e o momentum de um elétron não podem ser obtidos com exatidão. Se determinarmos a posição, não podemos ter acesso ao momentum, e vice e versa. Nosso conhecimento sobre o nível quântico, de acordo com tal princípio, será sempre, “inexoravelmente” limitado. O máximo que podemos obter com relação a estes dados são seus valores prováveis, mas nunca seus valores exatos.
O princípio da incerteza de Heisenberg destrói o determinismo causal da física clássica que postulava o conhecimento preciso a cerca das velocidades e das posições de um objeto. A física quântica demonstra que há um nível criativo de realidade, e que não é possível conhecer seus detalhes com exatidão, nem através da matemática, nem através da tecnologia. O que podemos fazer é intuir seus movimentos, deduzi-los com base nas leis da probabilidade. Dentro de um átomo, se espalhando como uma onda, o elétron poderá estar em qualquer parte, a qualquer velocidade. O princípio da incerteza é realmente revolucionário. Ele modifica um dos paradigmas científicos mais consolidados, a saber, o de que o empreendimento da Ciência é a obtenção de um conhecimento exato, preciso e detalhado a cerca da realidade. Se antes deste princípio, o objetivo da Ciência era esse conhecimento exato sobre a natureza, depois de tal princípio, ficou claro que há limites para o conhecimento, que não podemos obter conhecimentos exatos, e que, no máximo, nossos conhecimentos serão prováveis, serão aproximações, modelos, representações da natureza.
A natureza nos fornece sempre metade da verdade, mas deixa a outra metade velada. Quanto mais quisermos uma medição precisa da velocidade, mais energia teremos que utilizar no experimento, e maior será a alteração na posição da partícula, pois a energia empregada pertuba a mesma, quanto mais quisermos saber sua posição, mais energia, e mais oculta se tornara’ sua velocidade, pelo mesmo motivo. Estaremos sempre incertos quanto a um destes dois aspectos.
Deste modo, o principio da incerteza de Heisenberg deixa claro que o determinismo da natureza é uma ilusão. A Ciência não nos fornece certezas, mas probabilidades. A Ciência mora na incerteza! A incerteza é uma fina película, uma fronteira sutil, que, contudo, não pode ser ultrapassada pelas tecnologias mais avançadas e nem pelos cérebros mais empenhados. Para muitos, isto se deve ao fato de que a própria natureza é um jogo de probabilidades intercambiantes, de realidades mescladas, oscilantes, de informações interconectadas, umas aparecendo, no desaparecimento das outras. Para Stephen Hawking:


“O limite imposto pelo principio da incerteza não depende da maneira pela qual você tenta medir a posição ou velocidade da partícula, nem do tipo de partícula. O principio da incerteza de Heisenberg é uma propriedade fundamental, inescapável, do mundo, e teve profundas implicações na maneira como vemos o mundo”. (Stephen Hawking – Uma nova historia do tempo – pg. 95, 96)


Nas palavras dos doutores Caruso e Vitor, da UERJ:


“Há quem afirme que não se pode localizar exatamente um elétron, porque ele não se encontra em um lugar determinado.” (CARUSO & OGURI, 2006, P. 471).


Na verdade, esta idéia de que a incerteza não é fruto de nossa deficiência observacional, nem do fato de que a observação afeta o observado, mas sim que se trata de uma característica da própria natureza, já está presente desde os primórdios da mecânica quântica. Um de seus pioneiros, Paul Dirac, que apresentou teoricamente a descoberta do positron, a anti-partícula do elétron, e que, portanto, postulou a existência de uma anti-partícula para cada partícula, (e que para tanto, teria percebido o que Heráclito anunciou, ou seja, que o conflito entre os opostos, na verdade, é que gera a harmonia (CARUSO & OGURI, 2006, P. 547)), já teria dito, nos primórdios do empreendimento quântico, que a incerteza é própria da natureza:


“Existe um limite para os nossos poderes de observação e para o mínimo de perturbação que acompanha o nosso ato de observação, um limite inerente à natureza das coisas e que nunca pode ser vencido pelo aperfeiçoamento da técnica e da habilidade do observador.” (CARUSO & OGURI, 2006, P.468)


Somando-se à incerteza, o fato de o nível quântico obedecer à regras probabilísticas e não determinísticas, permite que as partículas subatômicas se combinem e se comportem de infinitas formas, fazendo do mundo quântico, o nível da criatividade.
Além disto, a dualidade onda-partícula implica que, mesmo que localizemos um elétron, em um feixe deles, detectando-o como uma partícula, ele é apenas parte de um pacote de elétrons que se propaga como onda, como descreveu Schrödinger. Assim, mesmo que um elétron seja localizado, em poucos segundos, ou partes de segundo, ele poderá sumir, espalhando-se como membro de uma onda que o levará à posições imprevisíveis. Luis Victor de Broglie descobriu a natureza ondulatória da matéria, mas prognosticou que os elétrons seriam ondas estacionárias, confinadas ao espaço atômico. Entretanto, as equações de Schrödinger, tão bem sucedidas em prever características quânticas confirmadas em laboratório, previram também que o caráter estacionário das ondas eletrônicas é passageiro. De acordo com suas equações, um pacote de ondas, que originariamente é estacionário, tem a probabilidade de se espalhar com a passagem do tempo. Isto quer dizer que todo elétron em um dado tempo, pode vir a desaparecer em um local para reaparecer em outro, mesmo que estejam bilhões de anos-luz separados... é uma questao de probabilidade.
Se todos os objetos, tal como uma cadeira, são formados por partículas subatômicas, isto significa que todos estão se espalhando continuamente? Tudo está desaparecendo e é possível que vá reaparecer depois, não se sabe quando, nem onde? Os objetos mais simples, compostos por um número pequeno de partículas, podem efetuar esse processo rapidamente. Uma única partícula pode vir à existência, desaparecer e voltar a existir, tudo em frações de segundo. Quanto mais complexo um corpo, ou seja; quanto maior o número de partículas que compõem um objeto, mais lentamente ele se espalha, e, afinal, até que as milhões de partículas componentes de um objeto se espalhem, é necessário um tempo longo. Por isso não vemos uma xícara desaparecer simplesmente. Pode levar centenas de bilhões de anos para que toda a matéria da tal xícara se espalhe e desapareça . Todos os elétrons que compõem uma cadeira, por exemplo, podem demorar milhares de bilhões de anos para desaparecerem em um ponto do universo, e reaparecerem em outro, talvez espalhados aleatoriamente (talvez agrupados, na mesma forma de cadeira de outros tempos, embora a probabilidade de isso acontecer, apesar de existir, ser muito “microscópica”). Entretanto, é uma questão de probabilidade, mesmo que isso seja difícil, é estatisticamente possível (Ocorre que o tempo de "vida" de um objeto, é menor que o tempo necessário para que tal efeito possa se efetivar, de modo que, se estatisticamente o fenômeno é possível, logicamente não. Lembremos, portanto, desta regra que Roland Omnes, pesquisador do CERN, apresenta em sua obra “Filosofia da Física Contemporânea”: A Lógica impõe limites ao probabilismo quântico. Mesmo que um fenômeno seja provável, se sua ocorrência fere a Lógica, ele não ocorrerá ). Se essa “pretensa” regra é universal, ou seja, se ela se aplica a todos os domínios quânticos, há autores que defendem tal tese, e outros que não. Entretanto, empregando a filosofia do pragmatismo de Wilhiam James, eu diria que neste caso essa “regra” se aplica, logo, para este caso, trata-se de uma boa regra. Ou seja; “toda vez que o tempo necessário para que uma determinada probabilidade quântica se confirme for maior que o tempo de existência do sistema que abarca a possibilidade de tal fenômeno, então o valor estatístico da probabilidade em questão, será anulado pela impossibilidade lógica de que o mesmo se efetive”. Vejamos um exemplo. Digamos que há uma probabilidade maior que zero de que uma nave gigantesca efetive um salto quântico pegando um atalho pelo espaço-tempo e em frações de segundo percorra nossa galáxia de ponta a ponta. Se a probabilidade de que esse fenômeno ocorra for tão mínima, que o mesmo pudesse ocorrer a cada 50 bilhões de anos, e se a idade estimada do universo é de 15 bilhões de anos, então a possibilidade estatística de que tal fenômeno se efetive é anulada pela operação lógica que demonstra que este fenômeno, para ter ocorrido, necessitaria de um tempo maior que o tempo de existência do próprio universo. Logo, neste caso, a Lógica limita, direciona, e dá sentido ao probabilismo quântico, separando o que é Ficção do que é Ciência. Alguém poderá alegar que, apesar de tudo, se a operação lógica determina que tal fenômeno nunca ocorreu, ela não consegue descartar a possibilidade de que ocorra no futuro, pois quando o universo tiver com 50, 100 bilhões de anos, tempo suficiente terá transcorrido para que o fenômeno se efetive ao menos uma vez. Sou tentado a pensar assim...gosto de Ficção. Mas aplicando o pragmatismo aqui eu diria: “Bem, por mais sensacional que essa questão seja, (1) nunca poderei me decidir sobre o que pode ocorrer daqui há 50 bilhões de anos, (1.1) isso não muda em nada nossa civilização, não é o grande desafio da Ciência, não é de alcance tecnológico, logo (2) não é uma questão suficientemente importante para que eu perca o domingo com a família fazendo cálculos, embora seja um apaixonante tema, que, se virar filme, poderá me levar ao cinema, com minha família, no domingo...
Mas há uma outra maneira de encarar o problema, que não o pragmatismo: Essa questão é extremamente interessante para a Matemática Pura, mas não possui relação alguma com o mundo da Física.
Quão filosóficas são as implicações da nova física. O retorno da metafísica ao coração da ciência é um dos principais fenômenos decorrentes da mecânica quântica. O comportamento das partículas quânticas é tão misterioso e surreal, que nos abre caminho livre para reflexões metafísicas, sugerindo que muitas coisas que pensávamos ser sobrenaturais, na verdade podem possuir uma fundamentação física, ou que a física pode possuir uma fundamentação metafísica, dentro do escopo da nova mecânica (um efeito colateral disto é um nocivo sensacionalismo e um euforia leiga em torno da nova ciência – vemos escritores que não estudaram Física Quântica e sua Filosofia, interpretando-a descabidamente).
Uma partícula existe mais como um conceito, como uma idéia, um hall de possibilidades, do que como um objeto. Nas palavras de Heisenberg;


“O corpúsculo já não é um objeto bem definido e, de acordo com a nova teoria, sua existência já não se revela mais pelo caráter descontínuo e localizado de suas manifestações sucessivas. Enquanto onda, já não é, em mecânica ondulatória, a vibração de algum meio mais ou menos sutil. Adquiriu um caráter simbólico e matemático cada vez mais acentuado’’. (Werner Heisenberg – Biblioteca Salvat, Rio de Janeiro, 1972 - pg. 92)


Sendo assim, a noção de corpo material parece perder o sentido no nível quântico. O objeto subatômico, mais do que um corpo, com dimensões e posições definidas, é um conceito matemático abstrato que representa um vasta gama de possibilidades, é uma onda de informações, flutuando por entre probabilidades diversas.

Capítulo Sexto



Pensando sobre "Realidade", a "Linguagem", e o cerne abstrato da natureza.



Vejamos, entre tantos possíveis, três modelos para a transferência dos elétrons de um ponto A (de um nível de energia A) para um ponto B (para um nível de energia B). O princípio da incerteza de Heisenberg nos impede de pensarmos em um simples deslocamento, bem definido, pelo tecido do espaço-tempo. É impossível sabermos com precisão a trajetória do elétron, sem tornarmos completamente incerta a sua velocidade.
Uma trajetória tão bem conhecida implica em uma indeterminação total quanto ao momentum do elétron. Além disto, tal esquema, não leva em conta a dualidade onda-partícula, pois ao traçar uma trajetória definida, considera apenas o caráter corpuscular eletrônico. Entretanto, o caráter ondulatório da matéria considera que, entre as duas posições, há toda uma região de probabilidades, onde podemos encontrar o elétron, pois a onda eletrônica se espalha entre A e B. Então, o que ocorre entre os pontos A e B?
Os Três modelos que veremos, são tentativas de resolver este impasse, ou, em outras palavras são modelos de descrição do que ocorre entre os pontos A e B.
O Primeiro modelo que apresentaremos brevemente é o de Richard Feynman, segundo o qual, entre A e B, os elétrons percorrem todas as trajetórias possíveis. Não é o caso que podem percorrer uma dentre tantas trajetórias prováveis, mas que de fato percorrem todas, ou seja; todas as trajetórias são igualmente reais, como enfatiza Stephen Hawking:


"Neste enfoque, não se parte da premissa que a partícula tem uma única história ou caminho no espaço-tempo, como ocorreria na teoria clássica não quântica. Pelo contrário, supõe-se que ela vá do ponto A ao ponto B por todos os caminhos possíveis. (...) A probabilidade da partícula ir de A a B é encontrada pela adição das ondas de todos os caminhos que conectam A e B." (Stephen Hawking e Leonard Mlodinow – Uma Nova historia do tempo – Rio de Janeiro, 2005 –pg. 103,104).


"Feynman desafiou o pressuposto clássico básico de que a partícula possui uma historia particular. Em vez disso, ele propôs que as partículas se deslocassem de um local para o outro ao longo de todas as trajetórias possíveis no espaço-tempo (...) Contudo, no dia-a-dia, parece-nos que os objetos seguem uma única trajetória entre sua origem e seu destino final. Isso está de acordo com a idéia das historias múltiplas de Feynman, porque para objetos grandes, sua regra de atribuir números a cada trajetória, assegura que todas as trajetórias, exceto uma, anulam-se quando suas contribuições se combinam". (Stephen Hawking – O Universo numa casca de noz – São Paulo, 2001 – pg. 83).



Cada trajetória é uma onda. Quando duas cristas se encontram ( duas ondas na mesma fase) essas ondas se reforçam, gerando uma única onda que é a soma das duas ondas iniciais. Quando uma crista e um vale se encontram (duas ondas em fases diferentes) elas se extinguem reciprocamente.No modelo de Feynman, todas as trajetórias são reais e de fato percorridas, mas como a grande maioria das trajetórias é percorrida por ondas em fases muito diferentes, a maior parte delas anula-se mutuamente. As trajetórias que sobram, correspondem às órbitas estacionárias permitidas no modelo atômico de Bohr. (Hawking 2005).
Temos aqui um problema sério de compreensão e linguagem: Como uma partícula se ramifica, não em uma, mas em incontáveis ondas, que percorrem todas as trajetórias possíveis entre dois pontos? Qual o sentido de unidade para uma partícula quântica? Como a unidade da partícula, durante os dois pontos, se transforma em multiplicidade de ondas? Se os conceitos de unidade e multiplicidade não podem ser precisamente empregados aos fenômenos quânticos, então toda vez que dizemos "a" partícula, estamos elaborando um enunciado impreciso. Se o modelo de Feynman está correto, então a trajetória múltipla das partículas é o limite daprecisão de nossa linguagem, a partir daí, qualquer tentativa de descrever os fenômenos da natureza por meio de enunciados precisos, rigorosos, sem ambigüidades, será em vão, pois se dizemos "a" partícula, enunciamos a unidade do que é múltiplo, e quando dizemos "as" trajetórias, enunciamos a multiplicidade do que é uno. A confusão vem do fato de que, no nível quântico, tanto a idéia de multiplicidade absoluta quanto a de unidade absoluta não fazem sentido. Nosso espanto vem do fato de que não encontramos paralelos disto no mundo clássico em que vivemos. Quando quero ir de um ponto ao outro, percorro um único caminho, e não os dez, ou "dez mil" caminhos possíveis, ora, isto acontece porque, enquanto objeto macro-espacial, meu corpo é uma unidade e não uma multiplicidade. Nas escalas clássicas, portanto, a fronteira entre unidade e multiplicidade é bem clara, e os objetos não oscilam de um lado para o outro. Como enunciar com exatidão o mundo quântico? "A" ou "As"? O problemada identidade é bem mais sério, é um problema ontológico, existencial: O que existe, deve ser igual a si mesmo, ora, assim como não existe um "animal-vegetal", um "homem-não-homem", um "círculo-quadrado", não existe algo como um "um-dois", "um-muitos", uma "unidade múltipla", ou seja, quando olhamos para o vaso em cima da mesa, dizemos "o" vaso e "a" mesa, e apesar de sabermos que existem bilhões de outros vasos e mesas, sabemos que cada qual é um único objeto particular, com existência própria, eque todos os vasos e mesas possíveis não são o mesmo vaso e mesa que vemos. Logo, o que é, é igual somente a si, e é somente si. Assim pensamos por séculos, mas a unidade da partícula nos instantes A e B não é, a rigor, nada igual à multiplicidade das ondas, cuja totalidade é a partícula, durante a passagem da mesma, de A para B. Novamente, se o modelo de Feynman estiver correto, então temos vários e contundentes problemas de linguagem, que nos deixam com a idéia de que a precisão lógica da linguagem termina onde o fervilhar misterioso do mundo quântico começa.
Haverá um modelo quântico de descrição da passagem eletrônica entre duas regiões, que nos deixe livre de tais ambigüidades em termos de linguagem?
Penso que o modelo mais conservador e aceito seja o seguinte: Tanto pelo princípio de incerteza quanto pelo caráter estatístico da mecânica quântica, não faz sentido falar de uma trajetória específica e precisa, mas sim de uma gama de trajetórias prováveis dentro de uma determinada região, que é a função de onda de uma partícula.


"Uma medida exata da posição de um elétron, por exemplo, supõe uma perturbação tal de sua velocidade que torna impossível conhecer o seu valor. O mesmo sucede com a posição quando o que se mede é a velocidade. Daíse segue a impossibilidade de se falar de trajetórias: uma trajetória significa o conhecimento simultâneo da posição de uma partícula, a cada instante, e da velocidade correspondente a cada posição.(...) O estado de uma partícula ou de um sistema subatômico é descrito mediante a chamada função de onda que obedece à equação de Schrödinger.(...) A informação contida na função de onda é de caráter estatístico; para cada nível de energia, a única coisa que se pode medir é a probabilidade de que os elétrons estejam em uma determinada posição." (Amadeo Montoto – Biblioteca Salvat de grandes temas – Os Átomos – Rio de Janeiro, 1979 – pg. 96-99).


Sendo assim, o mundo quântico impõe limites, não só à coerência de nossos enunciados, mas às possibilidades do nosso conhecimento. Se o princípio da incerteza, além de um princípio físico (que descreve como a natureza é) é também um princípio epistemológico (que descreve e demarca os limites do nosso conhecimento) desta forma, então, novamente o mundo quântico se revela a fronteira além da qual nossa linguagem se torna imprecisa, cheia de ambigüidades. Ora, isto acontece porque Linguagem e Razão são indissociáveis, e uma vez que não podemos racionalizar com absoluta precisão os fenômenos quânticos, naturalmente não poderemos enunciá-los com exatidão. Não podemos saber determinadas coisas, logo, não as podemos descrever, a não ser de um modo vago, tão impreciso quanto nosso conhecimento. Se não podemos saber exatamente o estado de um elétron, o máximo que podemos falar sobre ele, é que é provável que se encontre dentro de uma região, e dentro da própria região, é mais provável que se localize em algumas áreas e menos em outras, mas não podemos ter certeza quanto a posição e a velocidade exatas.
Estes dois modelos que apresentamos acarretam em vermos as limitações da linguagem. Será diferente o terceiro modelo que nos propusemos analisar?
O modelo atômico pioneiro da física contemporânea é o de Niels Bohr. Segundo ele, deveríamos considerar a possibilidade de haver órbitas estacionárias concêntricas ao redor do núcleo atômico.Enquanto permanecem nestas órbitas, segundo Bohr, os elétrons não emitem luz. Os elétrons só emitem luz e liberam energia quando saltam de uma órbita para outra ao redor do núcleo, sempre de uma órbita mais afastada para outra mais próxima do núcleo, mas nunca caindo no núcleo. Assim, quando saltam, os elétrons liberam energia, emitindo luz na forma de fótons. Tal modelo foi muito bem sucedido em explicar a estrutura do átomo de hidrogênio, que é o mais simples (o núcleo formado por um próton, com um elétron descrevendo uma órbita em torno do mesmo), mas não foi suficiente para dar conta de descrever os átomos mais complexos.
Contudo, tal modelo é como uma base, um alicerce, ponto, a partir do qual, refinando cada vez mais tal compreensão, toda a mecânica quântica desenvolveu seu empreendimento.
De acordo com o modelo de Bohr, o elétron nunca poderá ocupar um espaço intermediário entre duas órbitas, mesmo durante o salto quântico. Uma da interpretações deste modelo é o de que o elétron se transfere instantaneamente de uma para outra órbita. Ele desaparece em uma órbita e reaparece em outra, dando um salto descontínuo.
Aqui temos um golpe violento na física clássica. Se ela postulava que todos os fenômenos ocorrem no espaço tempo, então a transferência de um elétron, de uma órbita para outra, deveria ser um deslocamento de um corpo entre duas posições no espaço, e tal deslocamento deveria demorar um determinado tempo, mas precisamente o tempo de deslocamento de um corpo, viajando numa velocidade inferior à da luz, cobrindo a distância entre as duas órbitas. Entretanto, os elétrons desaparecem em uma órbita e reaparecem descontinuamente em outra, como se viajassem em uma realidade além (ou fora) do espaço tempo. Vejamos a posição do físico Amiti Goswami, doutor em física pela Universidade de Calcutá, pesquisador e professor titular, por trinta anos, da Universidade do Oregon:


"O elétron segundo Bohr, jamais pode ocupar qualquer posição entre as órbitas. Dessa maneira, quando salta, deve de alguma forma, transferir-se diretamente para a outra órbita. (...) o elétron dá o salto sem jamais passar pelo espaço entre eles* (*Nota do Autor: Entre as duas posições.)(...)Em vez disso, parece que desaparece em um degrau e reaparece no outro – de forma inteiramente descontínua." (Amiti Goswami, Richard E.Reed, Maggie Goswami – O Universo Autoconsciente – São Paulo, 2007 – pg. 48).


Como veremos mais à frente, o modelo de salto descontínuo revela-se muito problemático para a linguagem. Entretanto, mesmo se não for descontínuo, o salto em si, traz diversos problemas, e por isso mesmo, é matéria de muitas interpretações, e algumas confusões.


"Uma partícula muda de órbita dentro do átomo, cruzando regiões em que o espaço nem poderia existir. Esse paradoxo da Mecânica Quântica passa pela prova da experiência com instrumentos cada vez mais precisos. A Mecânica Quântica tornou-se famosa por suas idéias heterodoxas, mas poucas causaram tanta confusão, historicamente, como o conceito de salto quântico." (Gerd Leuchs- O Incrível salto do elétron – Super Interessante, Brasil, 1990).


Contudo, muito do que parece fantástico no salto quântico, é estatisticamente possível (embora a probabilidade de ocorrência seja extremamente baixa). Graduado em Harvard, com doutorado em Berkeley, e professor do City College of New York Universty, Michio Kaku discorre sobre o tema em seu livro "Hiperespaço":


"Há uma probabilidade finita de que partículas possam cavar túneis através de barreiras impenetráveis ou dar saltos quânticos. O tunelamento, ou saltos quânticos através de barreiras, sobreviveu a todos os desafios experimentais. Isso significa também que há uma probabilidade finita, calculável, de que eventos impossíveis ocorram. Por exemplo, posso calcular a possibilidade de eu vir desaparecer e abrir um túnel através da terra e reaparecer no Havaí". (Michio Kaku – Hiperespaço – Rio de Janeiro, 2000 – pg. 136,137).


Todavia, a massa do corpo humano, ou de qualquer outro objeto macroscópico, (como a décima parte de um grau de sal, ou um vírus, por exemplo) é uma massa de valor tão elevado, que embora tais objetos tenham suas funções de onda, e estejam sujeitos ao fenômeno quântico do tunelamento, a probabilidade de que ocorra é tão exageradamente pequena, que essa é uma possibilidade apenas matemática(com probabilidade superior à zero) mas é uma possibilidade física insignificante.
Muitos postulam que está implícito, e até explicito, na obra de Bohr, que o salto quântico, além de ser descontínuo(passagem de um ponto ao outro sem atravessar a distância que os separa) é também instantâneo(tal passagem não demoraria tempo algum, o que contraria a relatividade, que prevê que não há nada que possa se mover, ou ocorrer, numa velocidade superior à velocidade da luz). Gerd Leuchs, pesquisador do Max Planck Institute, tenta expor as razoes pelas quais se acredita que um salto instantâneo é impossível. Abaixo ele trata do conceito de salto quântico:


"Criado pelo dinamarquês Niels Bohr, em 1913, sustenta que dentro de um átomo existem regiões proibidas - onde os elétrons não podem permanecer e, segundo algumas interpretações, nem mesmo atravessar. Os territórios proibidos pareciam simplesmente não existir, criando grande desconforto intelectual para os físicos da época. O paradoxo persiste, mas as revolucionárias descobertas tecnológicas das últimas décadas abriram uma nova perspectiva de pesquisa, pois com a sua ajuda tornou-se possível observar um único átomo no insondável momento em que um elétron realiza o salto quântico. (...) Por meio das novas experiências, os físicos procuram eliminar as dúvidas que no passado atormentaram os próprios criadores da Mecânica Quântica. Uma delas perguntava quanto tempo um elétron leva para dar o salto quântico - se ele não atravessa espaço algum, não deveria gastar tempo algum. Parece lógico, mas uma coisa não assegura a outra. O fato é que há uma demora, como se pode verificar observando a emissão de luz pelo elétron toda vez que este dá um salto quântico. (...) Como esse tempo não é zero, parece claro que o salto quântico não é instantâneo" (Gerd Leuchs- O Incrível salto do elétron – Super Interessante, Brasil, 1990)


Entretanto, no mesmo artigo, Leuchs nos informa que recentes experimentos (1990) sugeriram fortemente que o salto quântico em si, realmente não demoraria tempo algum para realizar-se. Nós é que não poderíamos observá-lo instantaneamente, uma vez que somente podemos observar captando o fóton emitido pelo elétron durante o salto, de modo que haveria sempre um lapso de tempo entre o salto e nossa observação, pois o fóton emitido, viajando na velocidade da luz, demoraria sempre alguns instantes para nos trazer a informação de que houve o salto. A luz percorre 1 metro por bilionésimo de segundo. Leuchs nos conta de dois experimentos realizados, um pelo alemão Wolfgang Paul, da Universidade de Bonn. Prêmio Nobel (Contribuições em Ótica Quântica). (Não confundir Wolfgang Paul com Wolfgang Pauli, da Áustria. Prêmio Nobel de Física em 1945) o outro por Hans Dehmelt e sua equipe, da Universidade de Seattle, Estados Unidos (Hans também ganhou o Nobel de 1989, junto com Wolfgang Paul). Tais experimentos, entre outras coisas, provocando saltos quânticos, visaram medir o lapso de tempo entre o salto do elétron, e a emissão de um fóton por parte do mesmo. Ou seja, quanto tempo o elétron demora em emitir um fóton quando realiza o salto. Constatou-se que os elétrons demoram 10 bilionésimos de segundo para emitir a luz(o fóton). Ora, se a luz percorre 1 metro por bilionésimo de segundo, em dez bilionésimos ela vence a distância de 10 metros. Acontece que a distancia entre as órbitas é bilhões de vezes menor do que 10 metros, logo o salto demora muito menos do que 10 bilionésimos de segundo para ocorrer, mas ainda assim, entre o início do salto e a emissão do fóton, passam-se 10 bilionésimos de segundo, mesmo sendo a observação efetuada a uma distância muito menor do que 10 metros. Antes de a luz ser emitida, o salto já ocorreu. Em outras palavras, o salto ocorreria 10 bilionésimos de segundo antes da emissão dos fótons. Isto, dito de outro modo, não significa outra coisa senão que a velocidade do salto é superior à velocidade da luz, ou, que o salto não ocorre no tempo. Como tempo e espaço formam um único tecido, logo, o salto não ocorreria no espaço-tempo.


"Portanto, a experiência fornece uma medida moderna do antigo paradoxo, em que o salto em si não toma tempo real, mas a emissão de luz demora a ocorrer. Parece certo que em qualquer caso a emissão de fótons sempre demora algum tempo e nunca é imediata, como seria de esperar de acordo com o conceito tradicional dos saltos quânticos".(Gerd Leuchs- O Incrível salto do elétron – Super Interessante, Brasil, 1990)


Partindo da suposição que o sentido de "salto quântico" descrito por esse modelo seja correto, surgem inquietantes implicações filosóficas.
Em Física e Filosofia, Heisenberg pergunta: Pode a Linguagem descrever a Natureza? Podem modelos matemáticos, baseados nos conceitos do entendimento humano, de nossa linguagem, nos esclarecer quanto aos processos subatômicos?No mundo do átomo acontecem fenômenos tão estranhos, incomuns e misteriosos, que parecem não poder ser descritos pelos conceitos que dispomos em todos os nossos idiomas, fenômenos que necessitam de novas palavras, novas idéias, novos paradigmas para serem comunicados. ( ou, de novas experimentações conceituais, novos usos, novos significados...) Um exemplo é o salto quântico. Todo objeto que existe, no nosso entendimento, ocupa um lugar qualquer no espaço-tempo, não conseguimos pensar, e, portanto não conseguimos falar de um corpo que realmente exista, mas que não possa ser encontrado em nenhum lugar e em momento algum. Para a Linguagem que governa nosso entendimento, aquilo que não está em nenhuma parte, simplesmente não existe. Mas o elétron se transfere de uma órbita atômica para outra, sem jamais estar "entre" ambas. Durante a transferência entre as órbitas, o elétron é tão real quanto você (partindo da convicção de que a dúvida quanto à nossa existência objetiva, já tenha sido superada desde Descartes), mas simplesmente não está em nenhum lugar do Universo! O elétron existe aonde?O elétron, entre as duas órbitas, deixa de ser tão real quanto um objeto singular ( que tem existência física objetiva)e se torna tão real quanto um conceito (que podem ter existência proposicional, lógico-semântica, sem que haja objetos singulares factuais que lhes correspondam)? O verbo ser se aplica ao elétron durante o salto quântico? Mas, se o "ser" dos objetos físicos é "ser" no espaço-tempo, e se durante o salto quântico o elétron não está em espaço algum, se durante o salto quântico, o tempo do elétron é tempo nenhum, então, onde está, ou, o que é, o "ser" do elétron, neste caso? Se existir fora do espaço-tempo é impensável, poderá ser dito? Que espécie de enunciado pode descrever este processo? Por exemplo, se dissermos :"Durante o salto quântico o elétron "é" um objeto fora do espaço-tempo", logo nos lembramos que este "é"refere-se ao "ser" do elétron, e que ser, neste caso é estatuto de tudo que existe no espaço-tempo, não havendo "fora" dele. Sendo assim, esse enunciado é vazio. È óbvio que é um enunciado possível, o que não é possível é a sua veracidade. Alias, é um enunciado possível na medida em que qualquer enunciado é possível desde que seja formulado, mas é um enunciado sem sentido, ou seja, não faz sentido formulá-lo, assim como não faz sentido perguntar pela casada moça solteira. Não é que uma ou outra resposta seja a mais adequada, a questão é que a pergunta não faz sentido.
Podemos ir por outro caminho se dissermos: "Durante o salto, o elétron, que "é", deixa de "ser" ao sair da órbita A e volta a "ser" quando aparece na órbita B". Parece que resolvemos a questão. Temos um enunciado engenhoso. Mas logo somos tomados por nova vertigem, pois deslocamos o problema da Linguagem para a Ontologia. Se a frase que elaboramos é clara, o processo descrito não o é. Como um objeto oscila assim entre o ser e o não ser? Como podemos aplicar-lhe um verbo, que num piscar de olhos já não lhe diz respeito, para logo em seguida voltarmos a colar o verbo sobre o ente, e transformarmos o virtual em real? O elétron não é um sentimento para que "seja" sem materialidade. Ou o elétron (1)não existe (o que é falso, caso contrário não existiria mundo físico), ou (2) existe por um lapso de tempo despido completamente de todas as propriedades das coisas físicas existentes. Se por esse lapso de tempo, não podemos negar que o elétron "seja",mesmo que este "ser" seja um ser desprovido de tudo aquilo que é característica dos objetos físicos que "são", então, talvez esse não seja um problema para a Linguagem, e sim, e somente, para a Física e a Filosofia. Entretanto, a atividade da Física e da Filosofia é uma atividade do pensamento, e pensamos pelo logos, ou seja, pensamos na linguagem, pela linguagem e com linguagem. Pensar é falar, dialogar, significar internamente, então, mesmo que o problema do salto quântico esteja resolvido quanto à possibilidade de expressá-lo por meio da linguagem, a problemática permanece sendo absurdamente inquietante e sutil, porque mesmo expressado, a expressão permanece sem sentido, o enunciado permanece absurdo. Em "Física eFilosofia", Heisenberg recorre ao conceito aristotélico de potentia para lançar luz sobre a questão da tensão entre os conceitos clássicos e a natureza quântica. Para Aristóteles algo poderia existir enquanto ato, ou potência. Uma semente, por exemplo, é ato enquanto semente, mas é árvore enquanto potentia. O ato, portanto, é a existência concreta, a concordância ontológica, daquilo que é como de fato é, e a potência é também uma existência tão real quanto o ato, mas é existência daquilo que está presente no ato enquanto suas possibilidades. Ou seja, a existência da árvore, na semente, é uma existência real, porque a árvore é uma potência real da semente, um desdobramento natural da mesma, seu fim, sua conseqüência. A árvore já está "contida" na semente, e, portanto não existe enquanto ato, mas é real, na medida em que existe enquanto potentia. Analogamente, os objetos quânticos, mesmo que não possam ser medidos e localizados, mesmo que pareçam não existir concretamente, são reais porque existem enquanto possibilidades, probabilidades, potências elementares da natureza. Assim, durante o salto quântico o elétron existe enquanto possibilidade de ser, potentia de vir a ser.


"Na teoria quântica, analogamente, todos os conceitos clássicos - quando aplicados ao átomo - encontram-se tão bem ou tão mal definidos como o de "temperatura de um átomo": eles estão correlacionados com certas expectativas estatísticas acerca das propriedades atômicas; somente as instâncias raras, a expectativa, isto é, a probabilidade correspondente, equivalerá à certeza. E, de novo, como no caso da termodinâmica estatística clássica, é difícil considerar-se essa expectativa como algo objetivo. Talvez se possa chamá-la de tendência ou possibilidade objetiva, uma potencialidade, a potentia no sentido da física aristotélica. De fato, eu pessoalmente acredito que a linguagem que os físicos utilizam, ao falar sobre fenômenos atômicos, sugere em suas mentes algo semelhante ao conceito de "potentia". E os físicos, assim, foram gradualmente se habituando a falar, por exemplo, de órbitas eletrônicas, não como uma realidade, mas sim como uma potentia". (Werner Heisenberg – Física e Filosofia)


O físico John Bell, toma caminho diverso, e reflete de modo diferente de Heisenberg. Para Bell, o problema está em querer colocar o Universo dentro dos limites do espaço-tempo, e por isso achar que se o elétron não está no espaço-tempo, logo não está no universo, e como o universo é tudo que existe, logo o elétron não existe durante o salto quântico. É isso que traz toda a confusão. Como "universo" é tudo que existe, ao identificar o universo com o espaço-tempo, e verificarmos que os elétrons não se encontram no espaço-tempo durante o salto, chegamos ao absurdo de formularmos, ou que alguma coisa existe fora daquilo que contêm todas as coisas, ou que algo desaparece da existência, e a ela retorna, vindo de lugar algum e indo para um nada absoluto. Como vimos anteriormente, Bell elaborou um teorema para elucidar a questão. Segundo Bell, as partículas correlacionadas estão para além do espaço-tempo. Um enunciado "belliano" para o salto quântico seria: "Durante o salto quântico o elétron existe (S é P) em um outro nível de realidade que transcende os limites físicos do espaço-tempo".Reparamos que o enunciado S é P, ou seja: "O elétron é existente", ou simplesmente, "O elétron é"pode aplicar-se mesmo ao seu estado durante o salto, desde que sejamos cuidadosos o suficiente para enunciarmos algo como: "Durante o salto quântico o elétron (S) existe (é) em um nível "belliano" de realidade (P)". Agora a sentença "O elétron existe" pode ser aplicada sem embaraço tanto para falarmos do elétron no espaço-tempo, quanto para falarmos do elétron fora (ou além) do espaço-tempo. O teorema de Bell resolve a questão, acrescentando o conceito de "realidade não local", nos fazendo abandonar a idéia de "localidade", segundo a qual, toda a realidade se dispõe sobre o tecido do espaço-tempo.


"O teorema de Bell arrasa o dogma de causa local, efeito local da física clássica". (Amiti Goswami, Richard E.Reed, Maggie Goswami – O Universo Autoconsciente – São Paulo, 2007 – pg. 153).


"O teorema de Bell nos força a abandonar pelo menos uma de três teses fundamentais aceitas na Física Clássica: Realismo, Localidade, Indução". B. d'Espagnat, Sc. Amer. 241(nov. 1979) 128-40.


Se antes a situação era tão embaraçosa que postulávamos precisar de duas linguagens para uma realidade, agora com uma única linguagem explicamos duas realidades! Mas não estaremos fazendo uma ginástica muito grande em termos de Física, só para nos livramos de embaraços em termos de enunciados? Ou pensarmos em uma outra realidade é o caminho natural para entendermos os saltos quânticos? No fundo, talvez Bell e Heisenberg se encontrem, ou seja, talvez o nível das possibilidades, de Heisenberg, onde os elétrons existem enquanto potentias, e o nível de realidade não espaço-temporal postulado por Bell, apontem para uma mesma realidade quântica ainda desconhecida.
Sendo assim, o que está em cheque não é nem bem a nossa linguagem, mas nossa visão de mundo, a nossa crença de que toda a realidade se resume a um universo constituído pelo tecido do espaço-tempo, a matéria que se dispõe sobre tal tecido, bem como as leis, os campos e as forças que moldam tal matéria.
Nas palavras de Grichka Bogdanov, formado pelo Institut de Sciences Politiques de Paris e doutor em Física Teórica e Semiologia:


"É por isso que há algo louco nesta teoria, algo que doravante ultrapassa a ciência. Sem que o saibamos ainda claramente, é nossa representação do mundo que está em jogo e começa a balançar irreversivelmente". (Jean Guitton, Igor Bogdanov, Grichka Bogdanov – Deus e a Ciência – Rio de Janeiro 1992 – pg. 99)


Na conferência internacional de física, publicada em livro junto com as conferências de Abdus Salam e Paul M Dirac, Heisenberg palestrou sobre a história da física contemporânea, seus métodos, suas expectativas e sua filosofia. Novamente, nos narra sobre a relação entre Linguagem e Realidade. Obviamente, é pelo Logos, pela linguagem, que outorgamos significado ao mundo, e que, portanto, um mundo racional, e racionável, emerge. Não entremos em extensas reflexões sobre os processos cognitivo, cultural e histórico, deformação dos conceitos, mas ressaltemos, contudo, que toda a nossa experiência sensorial, todo o nosso senso comum, nos leva a ver o mundo de um modo que não corresponde à natureza da realidade em escalas subatômicas. A tese de Heisenberg é bem clara e simples: os conceitos não foram desenvolvidos para descrever a natureza em escalas quânticas, porque nunca, em todos os milhares de anos da história da humanidade, isso havia sido necessário ou possível. Sendo assim, segundo o autor, nossos conceitos são úteis na descrição dos fenômenos pesquisados pela física clássica, mas são insuficientes para descrever fenômenos completamente estranhos à experiência sensorial humana, à vida cotidiana, ao senso comum.


"Trata-se aqui de problema realmente fundamental: o progresso da técnica experimental de nossos tempos coloca, ao alcance da ciência, novos aspectos da Natureza que não podem ser descritos em termos de conceitos da vida diária. (...) Um problema bem mais complexo ocorre, na teoria quântica, no que diz respeito à utilização da linguagem. Aqui não se tem de começo, nenhum critério simples para se correlacionar os símbolos matemáticos aos conceitos da linguagem quotidiana; e a única coisa que sabemos como ponto de partida, é que os conceitos comuns não são aplicáveis ao estudo das estruturas atômicas". (Werner Heisenberg – Física e Filosofia)


Neste sentido, Heisenberg foi predominantemente influenciado por outro fundador da mecânica quântica, o físico dinamarquês Niels Bohr. Para Bohr, a linguagem bem sucedida na descrição da representação da realidade pela ciência moderna, estava tão alicerçada em estruturas de pensamento que haviam sido desenvolvidas por uma experiência humana que nunca, outrora, havia experimentado os estranhíssimos fenômenos quânticos, que a natureza dos mesmos estava para além do que tais estruturas poderiam abarcar, enfim, a linguagem que tão bem fundamentava a física clássica, era limitada e imprecisa para descrever a física quântica, mas ainda assim, deveria e teria de ser utilizada, pois afinal, trata-se da única linguagem que temos.


"Pretendemos dizer algo sobre a estrutura do átomo, mas falta-nos uma linguagem em que possamos nos fazer entender. Estamos na mesma situação de um marinheiro abandonado numa ilha remota, onde as condições diferem radicalmente de tudo o que ele jamais conheceu e onde, para piorar as coisas, os nativos falam uma língua desconhecida. Ele tem que se fazer entender, mas não dispõe de meios para isso. Nesse tipo de situação, uma teoria não pode 'esclarecer' nada, no sentido científico estrito habitual da palavra. Tudo o que ela tem a esperança de fazer é revelar ligações. Quanto ao mais, ficamos tateando da melhor maneira possível... Fazer mais do que isso está muito além dos recursos atuais." (Niels Bohr, Física atômica e conhecimento humano – Rio de Janeiro, 1995)


"Nossa lavagem da louça é como nossa linguagem, disse Niels. Temos água suja e panos de prato sujos e, no entanto, conseguimos deixar limpos os pratos e os copos. Também na linguagem, temos de trabalhar com conceitos pouco claros e com um tipo de lógica cujo alcance é restrito e desconhecido. No entanto, nós a usamos para introduzir clareza em nossa compreensão da natureza". (Werner Heisenberg, A Parte e o Todo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1996, p. 158-162.)


Quando predicamos algo, por exemplo, dizendo que todo p é s, que x é não s, e que x é p, parece que estamos fazendo uma grande confusão, e concebendo algo impossível, algo que a lógica de nossa linguagem não pode admitir. Estamos dizendo que todo elétron é partícula, que ondas não são partículas, e que elétrons são ondas? Os pré-conceitos de nossa racionalidade se voltam contra uma afirmação deste tipo, mas trata-se de um dos princípios mais básicos e seguros da nova física: que partículas não são ondas, mas que elétrons são tão ondas quanto partículas. Amit Goswami nos lembra que não poderemos dizer que o elétron é uma onda, por que também é uma partícula, e ondas e partículas não compartilham do mesmo significado, então diremos que o elétron é uma "ondicula" – exemplo da necessidade da criação de um "léxico quântico" – ondicula: objeto físico cuja realidade é uma fusão; sobreposição ou alternância, entre as configurações de onda e partícula.


"Temos de dizer, por exemplo, que o elétron não é onda (...) nem partícula(porque ele aparece na tela em locais proibidos às partículas). Em seguida, se formos cautelosos em nossa lógica, teremos de dizer que o fóton não é não-onda nem não-partícula, para que não haja mal entendido sobre a maneira como usamos as palavras onda e partícula." (Amiti Goswami – O universo autoconsciente – Rio de Janeiro, 2007 – pg. 93)


"Os elétrons não são onda nem partículas, poderíamos chamá-los de ondiculas, porquanto sua natureza transcende as duas descrições." (Amiti Goswami – O universo autoconsciente – Rio de Janeiro, 2007 – pg. 64)


Para Werner Heisenberg, a dualidade onda-partícula impõe limites não só à linguagem, masà lógica clássica. Como um único objeto, pode ser de dois modos, ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto,a mecânica quântica exige também uma nova lógica:

"O resultado dessas tentativas, da autoria de Birkhoff e Neumann, e mais recentemente por parte de Weizsäcker, podem ser descritas dizendo-se que o esquema matemático da teoria quântica pode ser interpretado como uma extensão ou modificação da lógica clássica. É, em especial, um dos princípios fundamentais da lógica clássica que parece requerer uma nova concepção, como discutiremos a seguir. Na Lógica clássica, supôe-se que, se uma afirmação tiver sentido, há então somente duas possibilidades a considerar, a saber, ela é correta, ou caso contrário, sua negação o será. Nas duas seguintes asserções, "nesta mansarda há uma mesa" e "não há uma mesa nesta mansarda", uma delas é verdadeira e, a outra, falsa. Aqui vigora o princípio do "terço excluído", tertium non datur: uma terceira possibilidade inexiste. Pode ocorrer pela fragilidade de nosso conhecimento, que não saibamos decidir qual das duas assertivas, a afirmativa ou sua negativa, seja a correta; mas, de fato, somente uma delas é verdadeira. Na teoria quântica, "o princípio do terço excluído precisa ser modificado". (Werner Heisenberg – Física e Filosofia)


É este tipo de conflito, de tensão, entre a lógica de nossa linguagem e os fenômenos quânticos, que faz Heisenberg refletir e sugerir que a nova ciência necessita também de novas experimentações com a linguagemque possam descrever coerentemente estas faces tão profundas e misteriosas da natureza ontológica do ser.
É neste sentido que o físico visa utilizar a matemática, uma outra ordem de "discurso" e "significação", em detrimento da linguagem verbal, para descrever os fenômenos da natureza, a fim de tentar driblar estas ambigüidades e paradoxos, que surgem quando queremos descrever a realidade física por meio de estruturas frasais, de predicações.