sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Capítulo Segundo



Os pensadores da modernidade e a formação da ciência guiada pelo paradigma do realismo materialista.


Na sua época, o mundo ainda era regido por duas forças; a fé e a espada, entretanto, Francis Bacon postulava que o conhecimento, a ciência, era, de fato, uma fonte de poder. E de um poder sobre a própria natureza, e, portanto, mais amplo, eficiente e produtivo que os demais. Atuando na elevação do status da ciência de um nível coadjuvante ao nível primordial no cenário cultural de suas épocas, filósofos como Bacon, Descartes, Hobbes e Galileu, promoveram a ascensão e o estabelecimento da Ciência moderna.
Bacon não foi só um dos principais defensores ideológicos da ciência, mas também um dos principais elaboradores de sua metodologia, dizendo ao mundo, não só que ele deveria fazer ciência, mas mostrando como. Para ele, nem todo estudo erudito e bem elaborado poderia ser considerado ciência. Para que algo se tornasse um conhecimento, de fato científico, deveria obedecer a uma metodologia rigorosa de pesquisa. Segundo Lou Marinoff, doutor em filosofia e professor do New York City College, o mundo tem uma dívida de gratidão com Bacon, por ele ter nos dado o método científico.
Embora outros pensadores anteriores a Bacon já utilizassem de experiências a fim de demonstrar a veracidade de suas teorias, esse procedimento não era consensual, representando mas uma exceção do que uma regra entre os estudiosos. Mas Bacon apregoou (e Galileu executou) que toda teoria só poderia ser considerada verdadeira se fosse comprovada por meio de experimentos. Nascia o método científico moderno, alicerçado na regra metodológica de união entre teoria e experiência; a segunda testando a primeira, a primeira explicando e prevendo o resultado da segunda.
Bacon levou a paixão pela experiência como busca pela verdade até as ultimas conseqüências; contraiu pneumonia e faleceu em 1926 em Hampstead Heath, após congelar galinhas como parte de um experimento.
O propósito baconiano era tornar a ciência mais do que um empreendimento especulativo, torná-la um instrumento capaz de produzir bens concretos para a humanidade. Em “A grande instauração”, Bacon propõe sua teoria: “Como um espelho desigual modifica o raio das coisas” a mente humana, sozinha, não e suficiente para a compreensão da realidade; “a mente quando recebe a impressão das coisas através dos sentidos, ao formar as próprias noções introduz e mistura sem fidelidade a sua natureza a natureza das coisas”. Ou seja; não somos capazes de conhecer o mundo somente por meio da reflexão, é preciso que examinemos a natureza por meio de instrumentos específicos e precisos, devidamente desenvolvidos para levar empreender a pesquisa de que necessitamos, e através dela, esclarecer-nos os detalhes do que investigamos. Se agirmos assim, além de conhecermos verdadeiramente o nosso objeto de pesquisa, poderemos, sistematicamente, produzir invenções a partir destes conhecimentos, que nos permitam manipular a natureza, controlando determinados processos, e extraindo dela o necessário para o progresso de nossa sociedade.
Para Bacon o método é necessário para a interpretação da natureza, a fim de obtermos verdades científicas, gerando resultados práticos e inquestionáveis. E tal método consiste justamente numa lógica de pesquisa que promove a articulação entre a reflexão racional teórica e a experimentação, em um auxilio recíproco.
O conceito de natureza em Bacon é o de mera matéria a ser investigada e explorada, de modo que seja utilizada para o desenvolvimento da civilização. A ciência, alicerçada no método, era para ele, o instrumento capaz de promover esta dominação sobre o mundo. Ao ver tudo como apenas matéria prima para a produção de utilidades, Bacon reforçou a tese materialista, politizou-a, tornou-a interessante do ponto de vista econômico, fundou uma visão de ciência como geração de conhecimentos importantes para a manutenção do poder. Bacon tornou o materialismo algo muito além de uma ideologia, tornou-o uma concepção de poder, um método de exploração, algo que ensinou aos governos e aos mercados que o conhecimento científico era capaz de dominar a natureza, e que dominada, ela poderia ser comercializada, e suas forças canalizadas em propósitos estratégicos. A crença no materialismo como sendo um retrato fiel da realidade, uma descoberta, uma lei da natureza, não passa de uma ingenuidade. O materialismo moderno é uma estratégia de poder disfarçada sobre a mascará da ciência. Seu propósito é este: encarar toda a natureza como sendo apenas uma matéria prima passiva de ser explorada, explorar os recursos naturais para gerar riquezas, gerar riquezas para construir um aparelho de guerra poderoso, usar esta máquina bélica para gerar poder político, e se utilizar do poder político para alavancar o poder econômico. Mas do que uma verdade científica, o materialismo é um jogo de interesses, um negócio lucrativo, um instrumento eficaz para satisfazer o desejo de dominação de terras, de recursos, de espaços e de povos, nutrido pelos homens ao longo dos séculos. Foi extremamente eficaz no desenvolvimento do estilo de vida ocidental, na constituição de uma civilização tecnológica de alto nível. Entretanto, essa mesma civilização parece estar próxima do seu ponto de saturação, e se antes preocupávamos-nos com o desenvolvimento tecnológico e com o crescimento econômico, ou nos preocupamos agora com o desenvolvimento moral e o crescimento espiritual da humanidade, ou desmoronaremos enquanto humanidade, e quiçá, enquanto espécie.
Outro grande nome do materialismo moderno foi o francês Pierre Gassendi. De Digne, Provence, aos vinte e cinco anos foi nomeado professor de filosofia da Universidade de Aix. Ele viria a se tornar cônego da catedral de Digne, mas mesmo religioso voltou-se contra o aristotelismo, considerado a ciência oficial, naquela época, pela Igreja de Roma. Gassendi defendia a astronomia de Copérnico, o atomismo de Lucrecio e a ética de Epicuro, em detrimento da física e ética aristotélica. Somente sua posição sacerdotal pode protegê-lo da inquisição.
Gassendi,em 1645,tornou-se catedrático do College Royal de Paris, assumindo a cadeira de matemática. Sua filosofia tornar-se-ia extremamente influente, e contribuiu para o desenvolvimento de um materialismo arrojado no meio científico. Segundo Will Durant, no seu clássico “Historia da Civilização”, vemos que “Newton preferiu os átomos de Gassendi aos corpúsculos de Descartes, encontrando no sacerdote da Provence a idéia da gravitação”.
Esses são alguns pontos da obra de Gassendi que concorreram na elaboração do materialismo científico moderno; para ele a alma era absolutamente material, sua existência dependia do corpo, a memória era apenas uma função do cérebro. O universo era constituído por átomos e estes são matéria pura, reafirmando assim os pensamentos de Leucipus, Lucrecio e Epicuro. Sendo assim, Gassendi afirmou um epifenomenalismo, teorizando que a consciência é causada pela matéria cerebral, sendo um mero fenômeno decorrente dos seus estados fisiológicos.
Mas passemos logo ao nome mais cabal na consolidação do paradigma científico do realismo materialista no período anterior a Newton.
Filho de um rico advogado e de uma senhora doente que sucumbiu diante da tuberculose, o jovem Descartes contraiu a mesma doença da mãe, e por pouco, ainda menino, não teve o mesmo destino. Jovem, graduar-se-ia em leis civis e canônicas pela Universidade de Poitiers, e ingressaria no exercito do príncipe Mauricio de Nassau, onde, segundo alguns historiadores, teria participado da batalha da montanha branca, pela guerra dos trinta anos. Conta-nos o filósofo que durante um recesso de guerra,no dia 10 de Novembro de 1619,em Neuburg, na Bavária, ele teria se escondido em uma estufa, a fim de proteger-se do intenso frio daquele inverno. Lá, aquecido,teve três sonhos nos quais relâmpagos e trovões irrompiam e algo lhe era revelado. Quando acordou, havia formulado em sua mente a geometria analítica e elaborado a aplicação do método matemático no campo da filosofia.
Mas nem tudo foi intuição. Descartes foi um estudioso determinado, um pesquisador rigoroso que encarnou o verdadeiro espírito científico. Filosofia, para ele, não era retórica, era pesquisa, criação nascida de um forte trabalho.
Se as preposições particulares de seu pensamento,assim como as de Aristóteles,viriam a ser superadas, o seu método, o sentido mais amplo, geral e sutil do seu pensamento seria incorporado pala ciência moderna, transformando-se em paradigma para ela. Em “Discurso do Método” Descartes elaborou princípios gerais sobre os quais uma ciência segura deveria se erguer. O primeiro principio postulava que até que pudéssemos confiar na veracidade de algo com inapelável certeza, eliminando qualquer dúvida a seu respeito,por mínima que fosse,não poderíamos pensá-lo como certo. Ou seja; devemos considerar tudo falso, a menos que não encontremos um ponto sequer do qual possamos duvidar. Segundo ele “A principal causa de nossos erros encontrar-se-á nos preconceitos de nossa infância(...)de cujos princípios me deixei persuadir, na mocidade, sem ter averiguado se neles havia verdade”. Outro principio consistia em fragmentar ao maximo nosso objeto de pesquisa,e analisar sistemática e rigorosamente, em separado, cada pequena parte que o compõe, a fim de compreender a fundo,com exatidão,todos os detalhes daquilo que estudamos.Esses princípios viriam a fundamentar o caráter da pratica científica, afinal, o cientista é aquele que diante de qualquer fenômeno, dissecando-lhe analiticamente, examinando cuidadosamente todas as partes de sua composição, chega então a invalidar ou corroborar sua veracidade, adquirindo conhecimentos a cerca de suas causas, conseqüências e estruturas. Mais do que isso, esse princípio tornou-se o próprio método da ciência, em todos seus campos de atuação, ou seja, a própria prática científica moderna pauta-se pela especialização analítica, isto e’, o método de pesquisa da ciência, consiste em dividir os objetos de estudo em diversas partes, e analisa-las minuciosamente, até as estruturas mais ínfimas, vendo as coisas não como um todo, mas como coleções de partes. Da medicina a geografia, o método cientifico moderno é cartesiano, consistindo na colocação em prática, enquanto regra de pesquisa e visão de mundo, do princípio filosófico de Descartes, anunciado no Discurso do método.
Paradoxalmente, Descartes não era um materialista. Postulava a existência de duas substancias, uma corpórea, material e outra imaterial, para alem dos meandros da física ordinária. Porem, ao fazer esta distinção e apregoar que a ciência deveria ocupar-se da matéria e seus fenômenos e não da substancia que a transcende, ele acabou por criar uma dicotomia entre o corpo e o pensamento, a matéria e o espírito. Assim, fez com que entendêssemos tais coisas como partes separadas e independentes, sacramentando que a ciência deveria ser exclusivamente materialista.
Qualquer estudo sobre Descartes, ainda que breve, deve mostrar o seu caráter de investigador apaixonado pela pesquisa. O leigo tem a imagem pueril do filósofo como um homem completamente absorvido em seus pensamentos. Descartes encarna bem uma visão mais profunda, na qual o pensamento do filósofo surge como resultado de uma vida concreta de pesquisas e investigações. Citemos novamente Will Durant discorrendo sobre o pensador:


“A ultima década de sua vida, contudo, foi dedicada a ciência. Transformou seus aposentos em laboratório e realizou experiências de física e fisiologia. Quando um visitante pediu para ver sua biblioteca, Descartes apontou para um traseiro de vitela que estava dissecando(...)Já nos referimos a sua geometria analítica, que desenvolveu, e a sua delineação do calculo infinitésimal”. Foi ele que estabeleceu a convenção de usar as primeiras letras do alfabeto, para, nas equações, representarem quantidades conhecidas, e o das ultimas letras para as desconhecidas. Pesquisou a força exercida por sistemas pequenos, como alavancas, cunhas e roldanas, e pelas rodas e tornos. Formulou leis de inércia, impacto e ímpeto. Dissecou animais e descreveu seus detalhes anatômicos. Também dissecou um feto, com especial atenção ao cérebro, com o intuito de verificar a relação entre os processos cognitivos e as estruturas fisiológicas. “Talvez tivesse sugerido a Pascal que a pressão atmosférica decresce com a altitude, embora se tivesse enganado ao declarar que o vácuo não existe em parte alguma, exceto na cabeça de Pascal”.


A teoria dos vórtices, elaborada por ele, “lembra” a teoria contemporânea dos campos magnéticos. Segundo ele, todo corpo está envolvido por vórtices, que são partículas, em turbilhões, a sua volta, formando camadas concêntricas. Descartes atuou ainda em diversas áreas, como na ótica, criando lentes com curvatura hiperbólica ou elíptica, livres das aberrações e distorções ópticas produzidas pelas lentes esféricas.
Como vimos, Descartes foi um grande experimentador, realizando segundo seu próprio método, investigações empíricas em diversas áreas. Sua teoria cosmológica também e’ interessante. Nela, o universo é constituído de vários turbilhões, ou vórtices, nos quais as partículas de matéria, e todas as coisas, tais como planetas e estrelas, giram incessantemente. Todavia, ao contrário do que esta teoria previa, as observações de Kepler demonstraram que as órbitas dos planetas são elípticas e não circulares. Entretanto, não foram os detalhes de suas teorias que se tornaram paradigmáticos para a ciência, mas sim suas idéias mais gerais, tanto metafisicamente(sua visão de mundo e ciência) quanto pragmaticamente (sua elaboração de uma metodologia de pesquisa).
O universo é um mecanismo material e deve ser pesquisado enquanto tal, segundo um método rigoroso com princípios claros de investigação cientifica. Eis a idéia e motivação centrais da ciência moderna. Eis a filosofia cartesiana.
Fazendo surgir uma compreensão da realidade calcada nestas idéias, o cartesianismo concorreu para o assentamento de uma cultura materialista-mecanicista, na qual nossas sensações, emoções, nossos corpos, a respiração, a natureza e todas as coisas, são mecanismos materiais funcionando de acordo com as leis da mecânica. Segundo Durant, essa visão foi decisiva para os conhecimentos obtidos por Harvey, sobre a circulação sanguínea. Na verdade, tanto sua filosofia mecanicista quanto seu método de fragmentar o objeto de pesquisa para estudar cada parte em separado, erigiram um novo conceito de objeto, sistema, organismo e corpo. O corpo humano passou a ser visto como a composição de sistemas distintos, formados por partes específicas. Este conceito foi decisivo para o estabelecimento da medicina moderna. Mais do que isto. No cerne da ciência médica ocidental dos últimos trezentos anos, a filosofia de Descartes encontra-se como paradigma. Influenciada pelo pensamento cartesiano, a medicina percebe o corpo como uma máquina meramente material, divide-o em inúmeras partes, estudando-as minuciosamente, dissecando-lhes os detalhes. O nascimento das diversas especialidades médicas é o próprio método cartesiano sendo seguido detalhadamente.
Para Descartes, portanto, só é real o que através de uma análise minuciosa puder ser tido como tal. Na frase de Max Planck; “O real da ciência é o que se pode medir!”.
Contudo, muitos viram em Descartes um idealista, e influenciados por ele, conceberam a precedência e supremacia do espírito sobre a matéria. Em varias obras o próprio filósofo deixa clara essa idéia. “Penso logo existo”. Constatamos que existimos, não pelo que temos de material, nosso corpo, mas pelo que temos de imaterial,nosso pensamento. O pensamento é que se encontra como essência do homem. Sem ele, o ser é apenas um corpo como outro qualquer. Entretanto, como afirma Durant: “Descartes, contudo, ofereceu um antídoto para o idealismo – a concepção de um mundo objetivo ,completamente mecânico . Sua tentativa para compreender as operações orgânicas bem como as inorgânicas, em termos de mecânica, deu um impulso ousado, porem frutífero ‘a biologia e fisiologia, e sua análise mecânica das sensações, da imaginação da memória e da volição tornou-se uma grande fonte da psicologia moderna.
Descartes foi realmente controverso. Embora sua filosofia tenha sido, e seja extremamente influente, nem de longe o pensador foi bem acolhido em sua época. Recebeu críticas da Igreja e das universidades, de Gassendi e Hobbes. Contudo, em1649, o pensador recebeu calorosos e insistentes convites da Rainha Cristina da Suécia, para que fosse lhe ensinar filosofia. Saiu de Amsterdã para Estolcomo em setembro daquele ano, tendo sido recebido com honrarias de gênio na Escandinávia. Ao longo dos anos, o filósofo adquirira o hábito de acordar tarde, todavia, a Rainha queria ter aulas com ele três vezes por semana, às cinco horas da manha. Durante dois meses de um inverno intenso, o pensador acordou durante a madrugada gelada, honrando seu professorado. No primeiro dia do mês de fevereiro de 1650, Descartes ficou resfriado. Morreu dez dias depois, longe da França, com pneumonia.


“O dicionário da Academia Francesa,em 1694, definia filosofo, como aquele que se dedica a trabalhos de pesquisa relacionados ‘as varias ciências e procura determinar as causas e princípios delas, a partir de seus efeitos”. (Durant)


Descartes não só se enquadrava perfeitamente nesta definição, como ajudou a construir tal conceito. Se suas concepções particulares tornaram-se obsoletas, suas idéias gerais permanecem vivas no cerne paradigmático que norteia nossa ciência e, portanto, nossa cultura.


“(...) no século XXVIII quase nada ficou desse sistema outrora vitorioso, salvo sua tentativa de reduzir o mundo exterior a um mecanismo que obedecia ‘as leis da física e da química. Toda nova descoberta cientifica parecia apoiar esse mecanicismo cartesiano”. (Durant)

Nenhum comentário:

Postar um comentário