sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Capítulo Terceiro



A ontologia materialista na Ciência Moderna



A ontologia materialista da ciência moderna nasce como fruto da fusão entre o materialismo atomista grego e o mecanicismo filosófico cartesiano.
Em “A mecânica de Newton e sua influência sobre a formação da Física Teórica”, Albert Einstein salientou que:


“A importância dos trabalhos de Newton consiste principalmente na criação e na organização de uma base utilizável, lógica e satisfatória para a mecânica propriamente dita”.
(Albert Einstein – Como eu vejo o mundo – Rio de Janeiro, Nova Fronteira – pg. 186)


Na verdade, a história da ciência moderna é a história do desenvolvimento do pensamento mecanicista materialista (com suas implicações éticas, culturais e políticas). Sobre o ponto essencial do pensamento da física clássica, escreve Einstein:


“Assim, pois, este sistema teórico em sua estrutura fundamental se apresenta como atômico mecânico. Portanto todos os fenômenos têm de ser concebidos do ponto de vista mecânico, quer dizer, simples movimentos de pontos materiais submetidos à lei do movimento de Newton”.
(Albert Einstein – Como eu vejo o mundo – Rio de Janeiro, Nova Fronteira – pg. 194)


Esse paradigma mecanicista foi primeiramente formulado e difundido pela filosofia de Descartes. O pensamento cartesiano foi extremamente influente na física de sua época, e muito influiu sobre o desenvolvimento posterior dessa ciência.


“Nos seus Principia Philosophia, de 1644, Descartes apresenta os fundamentos de seu sistema filosófico e científico, os princípios gerais da Física e detalhadas considerações a cerca de fenômenos terrestres e celestiais. A influência dessa obra, a partir do século XVII, pode ser aferida pelo fato de que não há livro de Física publicado ente 1650 e 1720 (incluindo os Principia Mathematica de Newton) em que os problemas levantados e analisados por Descartes, sob sua ótica mecanicista, não fossem considerados.”
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 24).


Entretanto, embora pioneiro do mecanicismo, Descartes não conseguiu formular uma teoria física consistente, capaz de explicar os fenômenos naturais. Partindo, pois, do mecanicismo, foi Newton quem o fez.


“Coube a Newton lançar as bases de uma nova cosmovisão e iniciar uma nova fase do Mecanicismo.”
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 25).


Todavia, se os detalhes técnicos do sistema físico elaborado por Descartes revelaram-se incompatíveis com as observações empíricas, e se mesmo o seu formalismo matemático foi insuficiente para servir de alicerce para a física clássica, a sua contribuição filosófica para a ciência marcou-a tão profundamente, que podemos dizer que a filosofia cartesiana encontra-se como um paradigma, uma visão de mundo norteadora do empreendimento científico dos últimos séculos. O que estamos à dizer, é que a visão mecanicista de mundo, apresentada pela filosofia cartesiana, inspirou por séculos a ciência física. Ou seja, se não sobreviveram os detalhes técnicos de sua física, o mesmo não podemos dizer de seu ideal mecanicista, que permaneceu vivo no coração da ciência moderna, como notamos nas palavras dos professores Francisco Caruso e Victor Oguri, do Departamento de Física Nuclear e de Altas Energias da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, quando tratam em sua obra, sobre o pensamento de Descartes:


“Seu projeto mecanicista de explicar a pluralidade dos fenômenos físicos a partir das interações entre partículas, no entanto, sobrevive; e’ retomado, por exemplo, no programa einsteiniano de geometrizar a Gravitação”.
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 25).


É claro que sistemas idealistas, que conceberam a existência de algo para além da matéria, surgiram ao longo dos séculos. Pensadores como Platão, Berkeley e Bergson, cada qual em sua época e ao seu modo, apresentaram teorias nas quais discorriam sobre a coexistência entre um plano transcendental de realidade arquetípica, e o plano físico de nossa experiência empírica. Berkeley foi além, levou o idealismo ao extremo e postulou que todas as coisas não são nada mais do que manifestações do pensamento divino. De acordo com sua tese, tudo, todas as coisas, eu, você, o mundo, são partes do pensamento que Deus pensa. A existência de um mundo material real e independente, fora do pensamento de Deus, é pura ilusão. Mas tal ilusão não significa que estejamos sonhando. Deus é quem sonha. Nós somos o sonho.
Os estóicos e Spinosa elaboraram teorias monistas, nas quais Deus está presente em todas as coisas, em cada partícula de matéria, cada célula, cada gota de sangue.
Mas, mesmo havendo tantas teorias idealistas, foi o realismo materialista, que se sistematizando em mecanicismo, tornou-se paradigma cientifico, pois além de parecer mais óbvio e gerar resultados empíricos concretos, o materialismo é interessante economicamente, por impulsionar o progresso da exploração dos recursos naturais, favorecendo o enriquecimento financeiro e o fortalecimento político de nações e mercados, afinal, na base desta teoria, encontra-se a visão de que a natureza, bem como todas as coisas, constitui matéria prima passiva, devendo ser utilizada para o saneamento das vicissitudes de nossa espécie. Não que seja esta a única motivação, mas muitas vezes a construção de uma verdade perpassa por uma estratégia de poder. Aceitamos como verdadeiros, os conceitos que nos são convenientes, que nos servem, em propósitos úteis, para determinados fins e durante certo tempo. Na passarela por onde os homens desfilam suas ambições e mostram-se sedentos por progresso, a “Verdade” deixa de ser uma questão metafísica e torna-se mais um instrumento político. Possuir a “Verdade” é ter o domínio sobre os recursos, os meios de produção, os aparelhos de poder e força. Sendo assim, historicamente, o materialismo serviu bem aos nossos antepassados, empenhados na exploração de novos “mundos”, na abertura de mercados, e em um positivismo industrialista crescente. Por isso, se tivermos em mente o sentido de “Verdade” enquanto “aspecto autêntico da realidade”, temos de admitir o materialismo, não como “Verdade”, já que não há prova de que todas as estruturas do universo possam ser descritas como composições de partículas de matéria. Na astrofísica contemporânea, a constatação de que há mais massa do que matéria em algumas partes do universo, e que esse excedente não material, chamado de matéria e energia escuras, correspondem a mais de 95% do universo, é prova cabal de que uma fé cega no materialismo, disfarçada sobre um pretenso intelectualismo, não se justifica. A teoria da relatividade especial revela que a matéria não é nada mais do que energia condensada. Portanto, é preciso que reflitamos a cerca de nossas convicções, e que, ao invés de considerarmos certos conceitos como verdades, tratemo-los como estratégias do intelecto. Há sempre motivações, mesmo que inconscientes, por detrás do que acreditamos.
Vivemos em sociedades filosófico-científicas, nossos padrões, nossos preconceitos, nossas posturas e comportamentos, mesmo que não percebamos, são construções diretas e indiretas de uma visão de mundo filosófico-cientificista.
Interessa-nos neste capítulo, verificarmos sobre quais alicerces teóricos, a física clássica se ergueu.
Para Amiti Goswami, doutor em física nuclear e professor titular de ciências da Universidade do Oregon, a física clássica tem como paradigma filosófico o realismo materialista. Quais serão os fundamentos conceituais de tal paradigma? Vejamos:


“Os cinco princípios seguintes, portanto, enfaixam a filosofia do realismo materialista:
Objetividade forte
Determinismo causal
Localidade
Monismo físico, ou materialista.
Epifenomenalismo”.
(Amiti Goswami – O Universo autoconsciente – Rio de Janeiro, 2007 – pg. 35, 36)


Trabalharemos com essa visão de Goswami, e analisaremos cada um destes cinco pontos. Mas, antes, ressaltamos que, a pressuposição subjacente a estes cinco princípios é a tese materialista de que toda a realidade, conhecida ou desconhecida, visível ou invisível, perceptível ou não, é constituída por micro partículas de matéria, não havendo nada que não o seja. Os três primeiros princípios dizem respeito diretamente à pressuposto da física clássica, e os dois últimos, às suas conseqüências na visão geral de mundo do ocidente (moderno, pós-moderno e contemporâneo).
Qual o conceito de Objetividade? Segundo Goswami:


Descartes tomou emprestada de Aristóteles a idéia de objetividade. A idéia básica era que os objetos são independentes e separados da mente (“consciência”).
(Amiti Goswami – O Universo autoconsciente – Rio de Janeiro, 2007 – pg. 33, 34)


Este conceito se tornaria, na física clássica, conhecido como Objetividade Forte, e seria um de seus pilares de sustentação. Toda a mecânica de Newton, por exemplo, só faria sentido, se de antemão, o princípio filosófico da objetividade fosse considerado como verdadeiro. Afinal, a mecânica clássica trata dos fatores causais da configuração física do mundo, e estes, por sua vez, são independentes da existência de sujeitos conscientes, não havendo interação entre observadores e objetos, a não ser pelos processos da motricidade humana, agindo fisicamente sobre os corpos externos. Podemos notar a influência deste ideal sobre a descrição dos fenômenos naturais por parte da física clássica, no texto a seguir, de autoria de Einstein:


“Os grandes filósofos da antiguidade helênica exigiam que todos os fenômenos materiais se integrassem em uma seqüência rigorosamente determinada pela lei de movimentos dos átomos. Jamais a vontade de seres humanos poderia intervir (...)”.
(Albert Einstein – Como eu vejo o mundo – Rio de Janeiro, Nova Fronteira – pg. 194)


A idéia expressada acima por Einstein trata dos germes do determinismo causal e da objetividade. O conceito de determinismo causal é o de que todo movimento, por menor que seja, é determinado por uma causa mecânica objetiva, de modo que, quando conhecemos as forças físicas exatas que operam sobre certo sistema, podemos determinar com perfeição todos os detalhes a cerca de sua realidade futura, bem como de seu passado, por mais remoto que seja. Sendo assim, todo movimento poderia ser previsto, levando em conta as leis do movimento, as posições e as velocidades iniciais dos corpos. De acordo com tal visão, o universo é completamente determinado pelas leis da mecânica, de modo que se soubéssemos as posições e velocidades iniciais de todas as partículas de matéria do universo, então poderíamos, calculando seus movimentos, prever inequivocamente toda a história do cosmos, das eras cósmicas mais remotas, até a infinidade dos tempos. Esta visão de mundo, tão cara à Newton, Laplace, e enfim, à toda a ciência praticada nos últimos séculos, perdurou ainda no início do século XX. Esse ideal remonta aos filósofos gregos. Os professores Caruso e Victor apontam dois traços fundamentais da filosofia grega que “marcaram a trajetória cultural do Ocidente” (CARUSO & OGURI, 2006, p.1 ):


“Por um lado, a busca de uma visão da Physis baseada em relações causais, estabelecidas a partir da razão, cujo expoente máximo foi Aristóteles de Estagira. Por outro, a idéia de simplicidade manifestada desde quando se buscou compreender racionalmente a natureza a partir de um único princípio, de uma matéria primordial organizada pela ação dos contrários, e finalmente, a idéia norteadora de que existe um Cosmos, termo grego que significa um todo organizado.”
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 1).


Como vimos, o ideal filosófico de que a natureza é regulada por uma profunda ordem interna está na base deste determinismo moderno.
“A concepção de um determinismo absoluto de cunho mecanicista, nos moldes de Laplace, repousava na convicção de que era possível explicar o caos molecular a partir da ordem e da certeza.”
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 65).


O que chamo de paradigmas filosóficos da ciência, pode ser entendido como sendo visões de mundo a partir das quais o empreendimento científico irá se desenvolver. (Pensemos, por exemplo, no cultivo de vinhas. Temos que, um determinado vinho seja considerado de ótima qualidade. Não nos será possível pensar que o produto final, excelente, poderia existir, se o meio ambiente no qual ele é produzido, por questões tais como climáticas, geográficas, químicas e culturais, não fossem exatamente como o são. Esse conjunto de fatores, que tornam aquele ponto específico do globo, como sendo potencialmente fértil para a produção de um bom vinho, está diretamente ligado ao produto final, é, pois, assim, que quando se bebe um bom cabernet sauvignon, está se bebendo a própria França, ou mesmo o Chile, por exemplo, e enfim, está se bebendo todos aqueles fatores que, reunidos, possibilitaram que o tal vinho viesse a existir e fosse tal como o é, atribuindo-lhe suas características específicas. Da mesma forma, o ambiente cultural de uma sociedade, é como uma estufa, que propícia o crescimento de determinadas árvores do saber, enquanto inibe o desenvolvimento de outras. O que dizemos, é que a ciência não nasceu à toa na Europa, e não no Tibete, por exemplo. E isto porque, a Europa, e não o Tibete reunia os fatores culturais, os pensamentos filosóficos necessários para o desenvolvimento da ciência moderna. O paradigma é pois, aquela condição de possibilidade para o desenvolvimento de uma cultura).Trata-se de entender que, servindo de alicerce para a ciência, existem certos conceitos ou concepções, que, mesmo não sendo nada além do que visões de mundo, servem como diretrizes intelectuais, indicando os caminhos a serem trilhados pela comunidade científica. Características fundamentais do empreendimento científico, como a busca por teorias unificadas e por simplicidade, são frutos, senão, de uma espécie de fé nos ideais filosóficos de Cosmos, Causalidade, entre outros. É também neste sentido, que toda a Ciência, e em nosso caso, a Física, é alicerçada e precedida pela Metafísica. Isto quer dizer que estes ideais que tanto inspiram o empreendimento científico não são constatações, nem da razão, nem empíricas, mas tão somente disposições intelectuais que nutrimos, e que nos levam à fazer ciência da forma que fazemos. Durante séculos a ciência vem se ocupando em tentar entender e explicar o mundo, movida pela fé (convicção) de que (1) os fenômenos da natureza possuem causas específicas, e (2) que um conjunto de leis da natureza é a causa simples que configura toda a realidade, e (3) que, no fim das contas, conseguiremos explicar que toda a diversidade do universo se origina das mesmas causas naturais. Vemos isto claramente em dois momentos. Em Newton, quando declara que todo o saber pode ser sintetizado em um processo de focalização do conhecimento em torno de questões centrais, das quais todos os demais problemas variados irão surgir, e em uma citação sobre a obra do historiador da Ciência Gerald Holton, na qual o mesmo enfatiza como o ponto de partida do empreendimento científico são pressupostos filosóficos compartilhados ou ao menos disponíveis nas sociedades em que vivem os homens de ciência. Vejamos:


“Ofereço (os Principia) como os princípios matemáticos da filosofia, pois toda a essência da filosofia parece consistir nisso – a partir dos fenômenos de movimento, investigar as forças da natureza e, então, a partir dessas forças, demonstrar os outros fenômenos.”
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 65).


Newton revela aqui, sua convicção metafísica, de que todo o universo poderia ser entendido, desde que pudéssemos compreender as forças da natureza, enquanto causas primordiais de todos os demais (e diversos) fenômenos naturais, é tal convicção metafísica, que ele chama de essência da filosofia, e que, portanto, é também a essência da ciência, bem como sua motivação maior. A citação abaixo, é também exemplo significativo do que aqui tratamos:


“A relação entre causa simples e efeitos complexos, como bem enfatiza o historiador da ciência Gerald Holton, não e’ uma necessidade nem lógica, nem experimental, mas, poderia ser acrescentado, apenas uma convicção metafísica.”
(CARUSO & OGURI, 2006, P. 65).


Sendo assim, ressaltamos os conceitos de Objetividade e Determinismo como paradigmas norteadores da ciência moderna.
Mesmo em pleno nascimento da mecânica quântica, levaria um tempo para que fosse percebido o fato de que a velha física e seus princípios, que outrora se acreditara serem de alcance universal, eram agora limitados por uma fronteira: O “Mundo Quântico”. A realidade nas escalas subatômicas. Russel, pensador já do século XX, foi um dos que não perceberam, entre muitos, que a nova física reformularia totalmente nossa visão determinista de mundo. Russel revelou-se, ainda, crente no determinismo causal:


“Se por outro lado, admitirmos as afirmativas do método científico, não podemos evitar a conclusão de que a causalidade e a indução são aplicáveis à volição humana tanto quanto a qualquer outra coisa. Tudo quanto aconteceu no século XX em matéria de física, fisiologia e psicologia serve para reforçar esta conclusão”
(Bertrand Russel – Ensaios Céticos – Rio de Janeiro, 1970 – pg. 84, 85)


O princípio da Localidade foi desenvolvido muito depois de Newton. O seu formulador, um homem dos nossos tempos, foi Albert Einstein. A teoria da relatividade é uma teoria da gravidade, sendo uma extensão da teoria clássica da gravidade aos objetos que traçam movimentos em velocidades muito elevadas. Segundo tal teoria, há um limite de velocidade para o deslocamento dos corpos. O princípio da localidade implica que qualquer interação entre objetos se dá por meio de uma ligação material, ou seja, objetos que se influenciam (que interagem), necessariamente, propagam essa influência entre si, através de sinais locais, que são sinais que se deslocam pelo espaço-tempo numa velocidade sempre inferior à velocidade da luz, que é de trezentos mil quilômetros por segundo. De acordo com esse princípio os corpos que compõem o universo estão dispostos no espaço-tempo, sendo separados e independentes uns dos outros. Para que informações sejam compartilhadas entre dois corpos, ela deve viajar através do meio que os separa, sempre abaixo do limite de velocidade previsto pela teoria.
Na teoria de Descartes, havia dois planos distintos de realidade. De um lado, a mente e de outro o corpo. Espírito e corpo encontrar-se-iam na glândula pineal. Neste ponto do cérebro, o espírito se assentaria no corpo, e a partir dele o comandaria. Com o desenvolvimento da fisiologia, da física e da química, a ciência moderna negou o dualismo cartesiano, descartando a existência do espírito e afirmando que só a matéria é real. A ironia, foi que a própria filosofia cartesiana, postulando que o objeto da ciência era a matéria, e propondo uma fundamentação mecânica para o mundo, concorreu para o estabelecimento do materialismo científico. Esta visão de mundo, no qual tudo que existe é necessariamente material, é chamada de monismo materialista. Como já vimos, a difusão e consolidação desse monismo materialista é historicamente indissociável do mecanicismo-atomista da física clássica. Embora tanto Galileu, quanto Descartes, Newton, entre tantos outros, declarassem sua fé em um Deus, a verdade é que, dentro do sistema mecânico-atomista, não havia espaço para conceitos místicos, como Deus, e níveis sutis de realidade, uma vez que o próprio sistema exigia que exatamente tudo que existe deveria ser fisicamente explicado, como bem nos lembra Tomas S. Kuhn, em “A Estrutura da Revoluções Cientificas”:


“Por exemplo, depois de 1630 e especialmente após o aparecimento dos trabalhos imensamente influentes de Descartes, a maioria dos físicos começou a partir do pressuposto de que o Universo era composto por corpúsculos microscópicos e que todos os fenômenos naturais poderiam ser explicados em termos da forma, do tamanho, do movimento e da interação corpusculares. Esse conjunto de compromissos revelou possuir tanto dimensões metafísicas quanto metodológicas. No plano metafísico, indicava que espécies de entidades o Universo continha ou não continha – não havia nada além de matéria dotada de forma e em movimento. No plano metodológico, indicava como deveriam ser as leis definitivas e as explicações fundamentais: leis devem especificar o movimento e a interação corpusculares; a explicação deve reduzir qualquer fenômeno natural a uma ação corpuscular regida por essas leis.”
(Tomas S. Kuhn- A Estrutura das Revoluções Científicas – São Paulo, 2001 – pg. 64, 65)


Esse trecho acima citado é significativo para pontuarmos algo importante: ele desmistifica a visão de que a ciência é a busca imparcial pelo conhecimento da realidade. Essa, por certo, é uma visão romântica e ingênua a cerca do que é ciência. Vemos que, a ciência é um empreendimento intelectual, que tenta representar a natureza por meio de modelos e teorias, baseadas em determinados pressupostos. Sendo assim, tendo sido um modelo teórico consolidado e aceito, há um esforço em fazer com que todos os fenômenos físicos estejam de acordo com as previsões do modelo. Caso um fenômeno isolado não concorde com o modelo, e mesmo após várias tentativas de ajuste entre ambos, o tal fenômeno seja contrário aquilo que o modelo aceita e prevê, então a busca pela explicação desse fenômeno será abandonada, sem romantismo. Esse fenômeno será simplesmente considerado sobrenatural, e pejorativamente desdenhado como algo impossível e inexistente, e seus teóricos, como ignorantes ou charlatães. Por certos, alguns fenômenos sem explicação não serão logo descartados, mas também por que não discordam tanto dos modelos científicos. Tudo se passa como se não fosse a ciência que devesse concordar com a natureza, mas a natureza que devesse concordar com a ciência. Somente quando uma série de fenômenos importantes para a nossa compreensão do mundo começam a revelarem-se discordantes em relação aos modelos científicos estabelecidos, é que a ciência se vê obrigada a reavaliar seus modelos, e alargá-los, refiná-los, ou em casos extremos, até abandoná-los, a fim de construir novos alicerces teóricos que dêem conta de absorver, sem contradições, esses novos fenômenos que o sistema antigo não conseguiu acomodar e compreender.
Enfim, notamos que foi com base no pressuposto de que o Universo é compreendido apenas materialmente, que todo idealismo (tese, ou de que: (1) o nível da consciência, existente como um nível sutil de realidade, é a causa de toda a realidade material, ou que: (2) existem outros níveis de realidade que são metafísicos, ou simplesmente de que: (3) as experiências subjetivas, tais como pensamentos e emoções, não podem ser reduzidas à explicações materialistas) foi relegado como ilusão.
Assim surgiu outro princípio que ora listamos entre os cabais para a ciência clássica. Este princípio remonta ao pensamento de Pierre Gassendi, filósofo francês do período moderno, e sua teoria de que o pensamento, bem como os sentimentos e demais experiências subjetivas, são conseqüências físicas da mecânica fisiológica da matéria cerebral. Este é o princípio do epifenomenalismo, segundo o qual a mente, a consciência, pensamentos, sentimentos, emoções e vontades (toda a experiência subjetiva) são fenômenos secundários derivados dos processos eletroquímicos neurológicos. Pensamos que pensamos, e nos iludimos ao pensarmos que temos sentimentos, quando na verdade tanto o nosso pensamento quanto o que julgamos sentir são apenas fenômenos que só existem como conseqüências de nossa atividade cerebral.
O epifenomenalismo, por mais estranho que possa parecer ao homem comum, é necessariamente inferido dentro de um sistema determinista materialista, como é o caso da mecânica clássica, implicando que tudo, inclusive os pensamentos (enquanto processos físicos eletroquímicos neurológicos) e as ações humanas (enquanto simples efeitos físicos-motores dos comandos cerebrais), são totalmente determinados pelas leis e processos mecânicos que regulam o universo.
Podemos, portanto, aventar que estes sejam os princípios da filosofia do realismo materialista que servem como paradigmas científicos na modernidade.
O primeiro, objetividade forte, afirma que a realidade de cada coisa é independente da consciência dos observadores que as percebem. O segundo, determinismo causal, estabelece que sempre há uma causa mecânica para o movimento dos corpos, de modo que toda realidade se encontra determinada a partir destas causas, podendo ser rigorosamente descrita e prevista. O terceiro, localidade, concebe que só pode haver ligação e interação locais entre os corpos, de modo que a influência entre dois objetos se propagam pelo espaço-tempo numa velocidade finita, pressupondo que toda a realidade existe no espaço-tempo. O quarto, monismo materialista, reafirma que todas as coisas são feitas de matéria, de modo que tudo pode ser descrito em termos de estruturas físicas e químicas. O quinto, epifenomenalismo, endossa que não existe consciência como entidade independente da matéria, de modo que são as condições da matéria cerebral que criam e determinam as experiências mentais, tais como pensamentos e sentimentos.
Entretanto, a despeito de toda esta tradição, os conceitos da física clássica estão demonstrando ser incapazes de explicar satisfatoriamente os processos físicos comuns aos níveis subatômicos, sugerindo que os processos quânticos estão para além do que uma ciência materialista é capaz de resolver.
Para Tomas S. Kuhn, no seu clássico “A estrutura das Revoluções Científicas”, quando um paradigma se torna insuficiente em explicar certos fenômenos que se apresentam como cabais e inevitáveis para que compreendamos a natureza da realidade, então há o indicio claro da falência deste paradigma, através de uma revolução científica que culminará na adoção de um novo paradigma por parte da comunidade científica, de modo que esta nova visão de mundo seja capaz de apresentar respostas claras e coerentes a cerca dos pontos que na concepção antiga apresentavam-se problemáticos e paradoxais.
Stephen Hawking, doutor em cosmologia e professor Lucasiano de Matemática da Universidade de Cambridge, que ocupa a cadeira de Isaac Newton naquela instituição, discorre, em sua obra “Uma nova historia do tempo” sobre o caráter da ciência e a natureza das teorias científicas. (Em o “Universo numa casca de noz”, Hawking assume compartilhar da visão filosófica de Karl Popper, segundo a qual, as teorias científicas são modelos de descrição dos fenômenos naturais, e não representações exatas e precisas da natureza, e que portanto, qualquer teoria científica está sujeita à revisões) Segundo ele:


“Uma teoria será boa se satisfazer duas exigências. Ela deve descrever com exatidão uma grande classe de observações com base em um modelo que contenha somente poucos elementos arbitrários e deve fazer previsões bem definidas sobre resultados de observações futuras (...). Qualquer teoria física é sempre provisória, no sentido de ser apenas uma hipótese; nunca há como prová-la. Não importa quantas vezes os resultados dos experimentos estejam de acordo com a teoria, você nunca poderá ter certeza de que, na próxima vez, o resultado não a contradirá. Como enfatizou o filosofo da ciência Karl Popper, uma teoria é caracterizada pelo fato de fazer varias previsões que, em princípio, poderiam ser refutadas ou invalidadas pela observação (...) se algum dia for constatado que uma nova observação é discordante, precisaremos abandonar ou modificar a teoria”.
(Stephen Hawking – Uma Nova história do tempo – Rio de Janeiro, 2005 – pg. 23, 24)


Se a física quântica apresenta apenas paradoxos quando seus resultados são vistos através das lentes do materialismo, é possível que o problema esteja não nos seus resultados, uma vez que estão devidamente comprovados, mas nas tais lentes pelas quais os interpretamos. Muitos autores, como John Weller, Paul Davies e Amiti Goswami vêm propondo uma mudança radical no paradigma norteador da ciência, postulando que os dados da física quântica devem ser interpretados a partir de uma visão idealista de mundo, ou seja, de uma visão não materialista, que conceba uma profunda interconexão entre a consciência e a matéria, com primazia da primeira sobre a segunda, sugerindo-nos que o atual paradigma deixou de apresentar resultados, de modo que se continuar a ser adotado, não conseguiremos aprofundar nossos conhecimentos, ficando presos num mar de paradoxos e confusões, de tal feita, que ou deixamos de ser mecanicistas materialistas, ou deixaremos de fazer ciência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário